domingo, 22 de fevereiro de 2015

(Im)posição de impedimento

Não se preocupe o leitor que não gosta de futebol. Nem o que gosta. Jamais arriscaria minhas canelas e palavras num campo tão venerado por tantos, ainda mais para decifrar um enigma que até cientistas como Stephen Hawking sabiamente ignoraram. Ouvi falar que ele preferiu se dedicar à origem do universo – um problema anos-luz mais fácil de solucionar, reconheçamos.

O offside aqui é outro. Tem a ver com dois bolas murchas que levantaram a bandeirinha para mim bem no meio de partidas nas quais os times, até então, praticavam o que se espera de adversários civilizados: fair play. O primeiro Bê Eme, crítico de cinema, já vestiu o manto sagrado do Bonequinho Viu. O segundo, como toda professora universitária que se preze, tem sua sala de troféus cheia de títulos (acadêmicos).

Aos fatos: o tal crítico compartilhou em seu Facebook um texto – digno de todas as reverências, na opinião dele – de certa cronista com nome de vilã de novela. Um texto que, só para variar, não apenas responsabilizava a presidenta Dilma pelas grandes catástrofes da humanidade desde o Maracanazo, como ainda afirmava que ela “estava metida até os cabelos no escândalo da Petrobras”.

E lá fui eu – quase tão ingênuo quanto um assinante da Veja – entrar na área dedicada aos comentários para dizer que não achava justo botar na conta do Executivo somente as más notícias: que se listassem também as boas, como os recordes de produção alcançados pela empresa e a conquista do OTC Distinguished Achievement Award, prêmio recentemente concedido à petroleira por seu desenvolvimento tecnológico.

Cá entre nós, eu achava era tremendamente irresponsável fazer uma afirmação tão capilar quanto aquela sem provas. Mas isso eu não disse. Fiquei só nas boas notícias. A reação do rapaz? Um block. Isso mesmo: um block. Ele podia ter me respondido, ter me xingado (embora não fosse a atitude mais educada), ter me ignorado. Mas preferiu me deletar junto com meu obs. Aparentemente, o espaço era restrito a emoticons de aprovação.

Corta para o Bê Eme número dois, que acusou de censura uma amiga após esta perguntar no Face – em evidente tom de chacota ­– o que levava uma pessoa a usar, no século 21, as palavras mister, ulteriormente, quiçá e supracitada. Como no caso supracitado, era mister eu dar meu pitaco: censura? Por acaso ela proibiu alguém de falar ou escrever os vocábulos em questão?

O que veio ulteriormente, o leitor deve imaginar: outro block. Só que, dessa vez, com requintes de covardia, quiçá de canalhice. A professora, diferentemente do crítico, resolveu me responder: citando duas ou três linhas da sua gramática de cabeceira. Mas, como eu estava bloqueado – e, portanto, impossibilitado de acessar qualquer coisa que ela publicasse –, o que poderia ser um bate-bola bonito tornou-se peleja de um time só.

(Só soube que a doutora honoris causa em jogo sujo não havia me ignorado completamente porque fui alertado por amigos.)

Não discuto aqui o direito de cada um não ler ou ouvir o que o outro tem a dizer. O blocks (não os blocs) são uma conquista da democracia. Mas é que minha fé no ser humano sempre diminui ao topar com marmanjos que seguem engatinhando nas relações (e redes) sociais. Pior ainda quando se trata de marmanjos que – por lidarem com arte e educação – deveriam ser mais esclarecidos e, consequentemente, mais aptos a conviver com o contraditório.

Para não perder a metáfora boleira antes do apito final: ser expulso de uma mesa-redonda dessa maneira é como sofrer um carrinho por trás de quem veste o uniforme do time profissional, mas não saiu nem do dente de leite. A imagem que resta ao fim da partida é a do tira-teima repetido mil vezes – que mostra o quanto ainda precisamos treinar para não deixar o debate genuinamente democrático acabar na banheira.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Um porre de felicidade

É só entrar nas redes sociais ou nas páginas especializadas em “entretenimento”, principalmente aquelas cuja matéria-prima costumam ser decotes, bumbuns e demais instagrans de celebridades, para constatar o quanto todos os seres (humanos ou não) são superultramegafelizes – o que, por contraste, apenas confirma a mediocridade da sua vidinha cocrete-com-guaraviton.

Quase impossível não se deixar afogar pelas fotos sem filtro da Dani em Noronha, pelo close indecente no petit gâteau do Bruninho, pelo selfie só-sorrisos da galera do trabalho no níver do chefe, pela primeira aula de stand up paddle da tia Mariquita, pelas férias da Anitta Popozuda no Valle Nevado, pelo canil de um milhão de dólares que o craque Reymar comprou para o seu pastor alemão.

De repente o mundo virou uma pool party e só você não recebeu convite para um mergulho.

Nessa Disneylândia elevada à enésima potência, inundada de tanta beleza e prosperidade, muitas vezes é ofensa grave compartilhar uma olheira que seja diante do sol lindo – e artificial – que brilha lá fora. Logo surgem os tataranetos da Dona Pollyanna (não sei se com todos esses éles e enes) vociferando que você deveria ter dormido mais cedo ou caprichado no corretivo.

Ai então da sua pessoa se exibir um bocejo de fadiga ao encarar, por exemplo, aquele ônibus cheio às sete da matina. A resposta vem mais rápido que o motorista do 607: tirasse carteira ou comprasse uma bike. E os doutores da alegria não param por aí. Saco cheio do escritório? Fizesse shiatsu ou pedisse demissão. Restaurante caro? Levasse marmita ou começasse uma dieta. Calorão? Instalasse um ar novo ou mudasse para a Sibéria. Indignado com o aumento da luz? Votasse na oposição ou escovasse os dentes no escuro.

Só não venha chorar suas carambolas na minha timeline. Para isso existe psiquiatra.

Está aí uma saída possível. Quem sabe um profissional ajudasse você a verbalizar em poucos caracteres – os alegrinhos não curtem textos com mais de dois parágrafos – que seu salário é a conta do chá, e ele não é um Earl Grey; que seu bunker dista do escritório umas três São Silvestres; que shiatsu e demissão não revelam os números da megassena; que marmita, só se a mamãe de quem deu a sugestão preparar; que comida sem glúten e lactose é ainda mais cara que restaurante; que o ar novo não cobre toda a extensão da Avenida Brasil; que a Sibéria não tem biscoito Globo nem praia; que onde a oposição ganhou foi a conta d’água que aumentou – e nem escovar os dentes no escuro dá mais.

De resto é se dar alta e sair para tomar uns goles de felicidade. Sempre com moderação.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Sem filtro

Sem efeitos especiais, sem heróis e vilões, sem reviravoltas mirabolantes, apenas a vida como ela é: um almoço em família, uma briga entre irmãos, uma tarde que não passa, uma noite que poderia ter sido, um presente inesperado, uma viagem inesquecível, um dia de muito trabalho, um papo sério, uma partida de boliche, uma aula chata, um gramado macio, uma estrada pela frente.

Assim é Boyhood, a história que Richard Linklater levou doze anos filmando e que segue a infância e juventude do menino Mason (Ellar Coltrane).

Raras vezes assisti a um filme cujo ritmo captasse tão bem o fluxo dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Que fotografasse com tanta precisão o tempo como a sucessão de agoras que ele é. Sem nunca soar episódico, atinge uma fluidez só possível graças ao roteiro que escorre feito areia na ampulheta e à montagem discreta, que em momento algum chama a atenção para si.

O que também ajuda a jamais confundirmos as diferentes fases vividas pelos personagens é o fato de acompanharmos seu envelhecimento real e as notícias que afetam seu cotidiano, como a guerra do Iraque, as eleições para presidente nos Estados Unidos, o lançamento de mais um Harry Potter, o surgimento e o uso do Facebook.

Prova talvez maior da maturidade do roteiro e da direção é que não há flashbacks, não há narrações em off, não há personagens pensando em voz alta. O que tem de ser dito se mostra na tela na medida certa, sem supérfluos que subestimem nossa inteligência – não há necessidade de que se marrete uma ideia na cabeça da plateia ou de que se esfregue um sentimento no coração do espectador.

Ou alguém precisava desenhar que o apego do personagem de Ethan Hawke por determinado carro era símbolo de um sujeito que teimava em não crescer?

Igualmente digno de aplauso – pelo menos para quem sabe o quão difícil é traduzir a vida sem confiná-la em moldes – é o cuidado de Linklater em não resvalar no melodrama. E, convenhamos, não faltava material para isso, já que Olivia (Patricia Arquette) se envolve frequentemente com homens que têm problemas com bebida. Exemplo dessa contenção do roteiro é a cena de violência doméstica que não testemunhamos: vemos apenas a mãe de Mason já caída na garagem, enquanto o marido avisa ao garoto que ela havia sofrido um acidente.

Um último mérito (ainda que não menos importante): os diálogos. Destaque para a conversa sobre a existência ou não de magia no mundo, na qual Mason pergunta ao pai (Hawke) se elfos e afins são invenções. “E se eu lhe contasse a história de um ser gigante que vive nas profundezas do oceano, que canta e é tão grande que seu coração é do tamanho de um carro? Acharia isso mágico, não?”, ele responde entre rugas de dúvida e doçura.

Quem sabe aí esteja uma chave para interpretar a vida e, por que não, o próprio filme: para os desatentos (só para eles), nada realmente mágico acontece.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Globelezo

Problema nenhum com a Valéria Valenssa da vez desfilando seu corpitcho seminu na tela da tevê – não necessariamente no meio desse povo – às nove e cinco da manhã, às duas e seis da tarde, às sete e doze da noite. É tanta propina siliconada sambando por aí sem a menor vergonha e em qualquer horário, que ninguém mais veste a burca dos incomodados por causa de dois peitinhos e um bumbum.

Só fico me perguntando se – num repique de censura livre – a diretoria da Unidos do Projac resolvesse promover a igualdade dos gêneros e eleger um mulato espadaúdo para acompanhar sua musa nos intervalos comerciais. Atenção para a fantasia e os adereços: glitter e nada mais da cabeça aos pés, passando inclusive (e em especial) pela comissão de frente.

Imagina o carnaval que isso ia dar: a ala dos progressistas comemorando o fim da discriminação; a dos regressistas criticando a política de cotas para negros na tevê; a dos fashionistas machões decretando que o que é feio é para se esconder; a das viúvas do general exigindo o retorno da moral, dos bons costumes e da folha de parreira; a dos jornalistas defendendo a liberdade de ereção, digo, de expressão.

O barracão ia pegar fogo.

Com receio de que alguém se queimasse de fato, talvez os carnavalescos da emissora recuassem sua bateria e cobrissem o cristo do rapaz, mais ou menos como Joãosinho Trinta fez um dia com o Redentor. Daí para que manifestantes e manifesteiros botassem o bloco na rua e ocupassem as avenidas do país inteiro, reivindicando o fim da volta da censura, seria um décimo.

Um décimo também para que os bate-bolas travestidos de polícia sentassem o chocalho nos foliões e ainda levassem o estandarte de ouro de conjunto e harmonia.

Melhor deixarmos as alegorias na dispersão: é provável que não estejamos prontos para assistir a um pau que não seja de selfie. Mal lidamos com o topless feminino nas praias, que – sai verão, entra verão – insiste em virar manchete em gê-uns e erressetes. Idealizem então um bottomless. E masculino. E em cadeia nacional. A verdade é que, apesar de uma ou outra nota dez em evolução, ainda atravessamos o samba quando o enredo é igualdade, igualdade, abre as asas sobre nós.

Falta sapucaí à beça até a apoteose humana. A batida surda de tabus e preconceitos há de ecoar, infelizmente, para muito além da quarta-feira de cinzas.