domingo, 18 de maio de 2014

Memórias póstumas de um pacato cidadão

Não sei exatamente como aconteceu. Foi tudo muito rápido. Estava a dois passos de casa. Desviei os olhos pra mochila, ia pegar as chaves – quando me puxaram. Por pouco não caí. Me agarraram. Um deles acertou minhas pernas com uma barra de ferro. Eram três. Todos mascarados. Batmans, que eu me lembre. Me arrastaram até o primeiro poste da rua e me amarraram com uma coleira.

De repente passou uma moça. Era a vizinha. Entrou no condomínio correndo. Parecia mais assustada que eu. Foi a última vez que torci meu pescoço por ela.

Agora estou eu aqui entre nuvens tão escuras, que não consigo dizer se se trata do céu ou do inferno. Talvez seja a antessala da eternidade, um cantinho decorado por São Pedro pra gente mofar um tempo e tentar entender, pelo menos no meu caso, por que virou defunto autor antes da hora. Logo eu – que ainda tinha duas novelas, três séries e a Copa inteira pra acompanhar.

Teriam me confundido com algum ladrão? Ou com o estuprador do bairro? Mas esse já havia sido linchado até a morte na semana passada. Cheguei a me solidarizar com as vítimas do bandido pelo Face. O sujeito merecia uma punição mais severa. Por mim tinha sido julgado pelo STF antes de ser servido no jantar em Bangu II. Mas estamos no Brasil. Quer dizer, eu não estou mais, o que não deixa de ser uma vantagem post-mortem.

Por que me escolheram pra Amarildo então? Será que descobriram que presenteei meu sobrinho (que acabara de fazer a primeira comunhão) com os DVDs da Galinha Preta Pintadinha? Que eu pretendia queimar numa fogueira todos os Alienistas da Patrícia Secco junto com a própria? Que eu apoiava boicote irrestrito a filmes dublados? Que eu aprovava sem reservas a criação da bolsa-Orlando, benefício a ser oferecido aos incautos que ainda não tiveram o privilégio de abraçar o Mickey?

Pior: será que atinaram que eu levava mais tempo pra escolher roupa do que muita mulher por aí? Que não me importava de tomar café numa xícara enfeitada com florzinhas coloridas? Que não era chegado em feijoada, cerveja e carnaval? Que já tinha ido a show do Roberto Carlos e saído frustrado por não ter ganhado uma rosa beijada por ele? Que preferia leite desnatado e requeijão light?

Peraí. Para tudo. Será que me confundiram com comunista ou coisa que o valha? Seriam meus assassinos do tipo que não só não sabe diferenciar cores além das primárias, como ainda não tolera – e por isso mata – quem sabe? Pena não ter tido a chance de mostrar a eles que minha camisa não era vermelha; estava mais pro vinho.

Em algum lugar do espectro entre o fúcsia e o grená.

Um comentário:

  1. São tempos difíceis de intolerância e justiça pelas próprias mãos. Vc foi apenas mais um, mais uma postagem no Face.

    ResponderExcluir