Filme
com efe maiúsculo não é como aquele parceiro que, mal atinge o orgasmo, vira
para o lado e dorme. Filme que é filme, dos bons, não deixa você sozinho depois
dos créditos, da luz acesa, da volta pra casa. Passa o tempo e ele vai ficando,
ficando... Como aquele sentimento que, se não nos devora à primeira vista, aos
poucos se alimenta – e nos alimenta – de um olhar, um gesto, um carinho. Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle no original) é desses.
O
sujeito desatento sairá do cinema espalhando que assistiu a mais um filme
francês: duas pessoas se apaixonam, ficam juntas, têm lá seus teretetês – e falam
pelos cotovelos. O “diferencial”? As tais duas pessoas são mulheres e há umas
cenas de sexo entre elas. Se o camarada for apegado a rótulos, classificará o
longa como romance lésbico. Se estiver mais praquela senhorinha da segunda
fileira – cuja pressão sobe com qualquer peitinho de fora –, dirá que a fita só
fez sucesso porque apela pra sacanagem.
Chavões
que só servem para camuflar preconceitos – contra uma cinematografia, contra
uma orientação sexual, contra o próprio ato sexual.
Felizmente,
o filme dirigido por Abdellatif Kechiche não só dispensa
como arranca todas essas etiquetas. É uma história de amor. Ponto. Ou ponto e vírgula;
é também – e talvez principalmente – a história sobre o amadurecimento de uma
jovem, Adèle (a belíssima Adèle Exarchopoulos), que, de repente, se descobre apaixonada
por outra mulher, Emma (Léa Seydoux).
Destaque
para a direção cuidadosa, que acompanha de perto os rostos de atrizes e atores
em busca das menores nuances – não esquecendo, contudo, o que ocorre ao redor
deles, como na brilhante sequência em que vemos ao fundo, numa tela, momentos
de um filme (A caixa de Pandora)
sublinhando os pensamentos da protagonista.
O
maior acerto de Azul, porém, está no
roteiro, que mira a lente no romance e em suas sutilezas. Inspirado nos quadrinhos de Julie Maroh, o script de Ghalia
Lacroix e de Kechiche escapa dos atalhos fáceis, que poderiam resultar
em melodramices dignas de novela ruim: acertadamente, investe-se pouquíssimo tempo, por exemplo, na provável dificuldade dos
pais de Adèle de aceitar o namoro da filha com uma garota; e, ainda, ignora-se o
conflito que presumivelmente surgiria na escola em que Adèle dá aulas para uma
classe de alfabetização, se descobrissem que ela mantinha relações homossexuais.
Outro aspecto interessante – que apenas reforça a inteligência
do roteiro – diz respeito a como é retratado o rapaz que, logo no início do
filme, tem um namorico com Adèle: Thomas (Jérémie Laheurte)
jamais é visto como um bad boy, um aproveitador de meninas. Ele é um cara
legal, parece gostar da colega de escola, e até chora quando ela termina o relacionamento – o que afasta qualquer possibilidade de Adèle “ter virado” gay porque
fora maltratada por um homem.
Aliás, Azul tem como
um de seus maiores méritos, se não o maior, mostrar que qualquer discussão em
torno da sexualidade deste ou daquele indivíduo é – ou deveria ser – irrelevante.
Adèle se apaixona por Emma, uma pessoa como qualquer outra (com suas
qualidades, defeitos, manias, planos), e não uma criatura que possa ser
reduzida a um par de seios ou a um pênis. O que as aproxima – ou eventualmente
as separa – são, entre tantas e complexas circunstâncias, suas expectativas e ambições
em relação à vida: de um lado, Emma sonha ser uma pintora famosa, reconhecida;
de outro, Adèle se vê realizada ensinando crianças a ler e escrever. Aí mora o
abismo.
Um abismo, outro, reside na própria protagonista e deságua
explícito nas últimas cenas, que espelham as primeiras formando uma rima
delicadamente significativa: agora é Adèle quem divide a leitura de um texto com
seus alunos, como fazia seu professor de literatura no começo do longa (quando
a jovem, ainda aluna, apenas “recebia” a aula); pouco depois, ela deixa uma
galeria de arte e vira – aparentemente tranquila, certamente mais madura – a
esquina de sua história, o que se contrapõe à sequência inicial do filme, em
que sai de casa adolescentemente apressada, descabelada, correndo para não
perder o ônibus.
Pela sua resenha, parece bem interessante.
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