Parafraseando
a canção de Taiguara que abre e fecha o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius traz no corpo as marcas de seu
tempo.
Hoje
a mulher diz não.
Clara
(Sonia Braga em modo musa) se recusa a vender para a construtora Bonfim o
último apartamento do edifício Aquarius – onde mora há décadas, onde seus
filhos cresceram e onde discos e livros e lembranças contrastam com a assepsia
das cidades erguidas cada vez menos por pessoas, cada vez mais por criaturas
que se formam em business schools e trocam sonhos por metas, a exemplo do jovem
Diego (Humberto Carrão, excelente como o tubarão em pele de golfinho).
Certeza
de que doeu ali, entre as pernas dele e do avô, escutar a dona do imóvel
repetir “Eu não vou vender, seu Geraldo. O senhor já sabe disso”. Duas frases
que ela profere sem elevar a voz; com a suavidade quase blasé de quem está
“puta mas não estressada”, como revela mais tarde, numa conversa dura com as
crias, especialmente com Ana Paula (Maeve Jinkings, amarga sem ser azeda).
Se
dependesse da filha, Clara já tinha aceitado a oferta “generosa” da Bonfim e se
mudado para um desses condomínios de segurança máxima e alma mínima, os
estrangula-céus de nossas metrópoles. Mas quem perdeu o marido e até uma parte
do corpo (o seio direito) não aceita novas perdas tão facilmente; ela aprendeu
a valorizar cada conquista. Não por acaso conserva os cabelos longos – símbolo
óbvio, mas não menos poderoso, de sua vitória sobre o câncer.
Símbolos,
aliás, não faltam no álbum de metáforas montado pelo diretor e roteirista
pernambucano. Um dos mais emblemáticos – porque rima à perfeição com o apê de
Clara, que também guarda mais que objetos pessoais e, por isso, transcende o
tal “valor de mercado” – é a cômoda que guarda mais que as camisolas de tia
Lúcia (Thaia Perez). Aqui é particularmente interessante o efeito que causa no
público a descoberta do que representa aquele simples móvel para uma senhora de
setenta anos.
Kleber
gosta de provocar. E faz isso em diversos momentos, como na sequência angustiante
em que mulheres e homens surgem na praia gargalhando, numa espécie de ginástica
do riso, e de repente o treinador que os orienta – contrariando a expectativa
gerada pelo preconceito da plateia – convida a participar do exercício os
“estranhos” que se aproximam.
Passagens
como essa ajudam a retratar o país que a lente crítica do diretor vê. E se
espalham nas mais de duas horas de projeção. É a parede do bistrô que ostenta
fotos em preto e branco de homens brancos-ricos-velhos, numa alusão aos donos
do poder local – e, por que não, nacional, se lembrarmos o ministério
machocrata do atual “governo”. É o rapaz de “boa aparência” que vende drogas na
orla. É a louça na pia em dia sem Ladjane (Zoraide Coleto, brilhante nas menores
falas), numa referência aos direitos recentemente conquistados pelas domésticas.
É a manchete do jornal (“Eu gosto de mp3”) que resume a manipulação midiática.
Nenhuma
delas se compara, no entanto, à que denuncia uma colônia de insetos infestando
certo lugar e comprometendo sua estrutura. A cena põe para formigar a mente do
espectador sessão afora. É inevitável relacionar o ninho à oligarquia de
parasitas que, ao envenenar o frágil alicerce da democracia brasileira, mostrou
ser possível expulsar uma personagem incômoda – de um apartamento ou de um
palácio presidencial – sem usar a força bruta. Afinal, como observou Zuenir
Ventura em artigo sobre o filme, “há meios mais eficientes que os tratores ou
os tanques”.
Por
apresentar um forte teor político, explicitar sua visão ideológica e se entregar
a um desfecho catártico, há quem acuse Aquarius
de dispensar a sutileza e se render a maniqueísmos. É evidente que Kleber
recorre a um cinema mais tradicional, no qual heroína e vilão são rapidamente
identificados. Mas ele não cria, a partir desses elementos, uma realidade menos
verossímil. Longe disso. Na verdade, ultimamente tem sido até fácil encontrar claras
dando aulas em nossas universidades e diegos dando entrevistas em programas de
economia da Globonews.
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