domingo, 26 de junho de 2016

Pegadinhas

É triste e revoltante constatar o quanto a grande mídia brasileira – a cada dia menos constrangida em se mostrar sócia de quem só pensa em manter privilégios e restringir direitos – se esforça para desinformar a população. Chega a ser nocivo, para a saúde de olhos e ouvidos minimamente treinados contra a manipulação, conviver com a desfaçatez de certos veículos da imprensa.

Semana passada, chamou minha atenção – em especial agora, quando Temer e seus blue caps tentam limitar os investimentos em educação, desvinculando-os dos percentuais mínimos garantidos em lei – um artigo de Antônio Gois, publicado no Globo, em que eram listados os avanços alcançados na área nas últimas duas décadas, justamente em razão do maior volume de recursos aplicado.

Entre tais avanços, estava o fato de o número de crianças na escola ter praticamente dobrado. O fato de o contingente de brasileiros entre 25 e 34 anos com ensino médio completo ter saltado de 26 para 61%. O fato de o prolongamento da vida estudantil ter resultado em trabalhadores com maior renda – porque mais escolarizados – e em índices menores de gravidez na adolescência e mortalidade infantil. O fato de, entre jovens de 15 a 17 anos, a simples expansão de matrículas ter diminuído as taxas de homicídio.

Embora admitisse que a qualidade do ensino não melhorou na mesma proporção e que poderia ter sido feito muito mais com o dinheiro investido, o autor fazia questão de ressaltar, em sua conclusão, que os passos dados até aqui eram suficientemente importantes para não considerarmos inútil o esforço de se destinar um percentual maior da receita para a educação.

Infelizmente, no entanto, só chegaria a essa conclusão quem clicasse na chamada exibida na primeira página do jornal, que curiosamente fugia E MUITO da proposta do texto: “Gastos e resultados – aumento do investimento público em educação não melhorou qualidade de ensino”. Os incautos que parassem no título – e eles não são poucos – certamente teriam o “argumento” necessário para defender em seus zap-zaps o tal limite de gastos proposto pelo governo interino.

Não é a primeira vez que topo com esse tipo de pegadinha. Nem com esse tipo de pegadinha em relação ao mesmíssimo tema.

Há alguns meses o jornalista William Waack, em programa na Globonews, diante da notícia de que o Brasil dava mais do seu PIB para a educação do que países mais ricos – e, mesmo assim, sofria com a baixa qualidade do ensino –, revirou as célebres olheiras antes de sugerir um corte urgente de despesas no setor. Mais uma vez, a informação era mutilada: o apresentador não acrescentou que, em virtude do imenso número de estudantes brasileiros, nosso gasto com cada um era apenas o penúltimo numa lista de 34 nações, incluídas aqui outras dez em desenvolvimento.

Mera coincidência ou linha editorial? Descuido ou má-fé?

Por essas e outras (como os recorrentes editoriais que põem a culpa dos déficits bilionários na Constituição Federal de 1988, que garantiria mais direitos do que o Estado pode bancar), tendo a acreditar cada vez mais na velha máxima de Darcy Ribeiro: a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.

Inclusive – e em grande parte – midiático.

domingo, 19 de junho de 2016

Dias piores virão

Quem não se lembra do parlamentar chamando de “marco na depravação da sociedade” o beijo entre dois homens numa novela? Quem não se lembra do pastor vociferando contra um selinho entre duas mulheres – exibido pela emissora que, segundo ele, contribuía assim para “a destruição de valores morais fundamentais”? 

Quem não se lembra do pai que – ao dar ao filho umas panelinhas de brinquedo, com o intuito de mostrar a ele que cozinhar é uma tarefa comum a homens e mulheres – foi xingado de canalha nas redes sociais por ensinar o menino a “fazer coisas de menina”? Quem não se lembra da cantora baiana incentivada a “arrumar um quarto” e acusada de “querer ibope” ao se declarar gay?

Quem não se lembra do garoto carioca espancado até a morte pelo pai – que o considerava “afeminado” por gostar de lavar louça e brincar de dança do ventre? Quem não se lembra do jovem paraibano que, após ser agredido e ter o cabelo raspado, foi morto com tiros na nuca e no peito? Quem não se lembra do rapaz asfixiado com uma sacola plástica e pedaços de papel colocados à força em sua boca, nos arredores de Goiânia? Quem não se lembra da travesti assassinada em São Paulo depois de ter sido jogada para fora de um veículo em movimento?

Alguém dirá: são casos isolados. Não são. Aqui se registra um homossexual morto a cada (faço questão de escrever por extenso) vinte e oito horas. Quase um por dia.

E essas estatísticas tendem a piorar – salvo milagre que, obviamente, não há de se dar durante os cultos conduzidos por malafaias e felicianos.

Digo isso porque não acredito em dias melhores, menos homofóbicos, num país cujas escolas são impedidas – por setores conservadores da sociedade e da classe política – de adotar material didático que trata de questões de identidade e gênero (o chamado “kit gay”). Ou cujos governos cedem à pressão de tais setores – que consideram qualquer debate sobre o tema um incentivo à “promiscuidade” – e deixam de usar as salas de aula para combater a ignorância e o preconceito.

Também não acredito em dias melhores num país cujos atuais e temerários inquilinos do poder – em pleno século 21 – extinguem justamente o ministério ligado aos direitos humanos e planejam limitar os investimentos em educação (logo ela), desvinculando-os dos percentuais mínimos garantidos em lei. A fixação de um teto para os gastos na área certamente comprometerá não só a expansão e o desenvolvimento das redes de ensino fundamental e médio, como ainda a criação de vagas nas universidades e, consequentemente, a já precária qualidade de vida da população – em especial das comunidades mais vulneráveis, entre as quais as minorias sexuais.

Nesse sentido, caminhamos na contramão do que sugere um relatório recente das Nações Unidas sobre a América Latina, que pede que os governos locais, mesmo em tempos de recessão, não abortem as políticas referentes ao enfrentamento, por exemplo, da violência de gênero – políticas essas que possibilitaram conquistas sociais e econômicas a grupos historicamente relegados à marginalidade, como o LGBT.

Não bastasse todo esse retrocesso, há ainda uma milícia de parlamentares em Brasília disposta a derrubar o Estatuto do Desarmamento e liberar o porte de armas de fogo. É a tal bancada da bala. Financiada por fabricantes de... armas, ela vem recrutando cada vez mais seguidores com seu discurso bélico, segundo o qual todo cidadão “de bem” – hétero, claro – deve ter o direito de andar armado para se defender.

Como se vê, cidades como Orlando não são tão distantes quanto imaginamos. Quisera eu dizer isso porque mais brasileiros têm realizado o sonho de conhecer a Disney. Mas não. A boate Pulse, onde dezenas de pessoas foram assassinadas com um fuzil cuja munição era a homofobia, podia estar em qualquer uma de nossas esquinas.

Se ainda não está, sobra gente por aqui querendo abrir umas franquias.

domingo, 12 de junho de 2016

Crônica do eu te amo

Ek is lief vir jou. Te dua. Ich lieb Dich. Ana b’hibbik. Yes kez sirumen. M’bi fe. Tuma ke bhalo aashi. Ya tabe kahayu. Nahigugma ako kanimo. Obicham te. Soro lahn nhee ah. Ngo oiy ney a. T’estimo. Ne mohotatse. Ndimakukonda. Sarang Heyo. Mwen renmen ou. Volim te. Jeg Elsker Dig. Ik hou van jo. I love you. Lu ‘bim ta. Ljubim te. Te quiero. Mi amas vin. Ma armastan sin. Afgreki’.

Eg elski teg. Doset daram. Mahal kita. Mina rakastan sinua. Je t’aime. Ta gra agam ort. Tha gra dh agam ort. Mikvarhar. S’agapo. Hoo thunay prem karoo choo. Rohayhu. Aloha wau ia oi. Ani ohev otah. Guina higugma ko ikaw. Kuv hlub koj. Nu’ umi unangwa’ta. Szeretlek. Eg elska tig. Palangga ko ikaw. Hum Tumhe Pyar Karte hae. Saya cinta padamu. Negligevapse. Taim i’ ngra leat.

Ti amo. Aishiteru. Kulo tresno. Naanu ninna preetisuttene. Kaluguran daka. Nakupenda. Tu magel moga cho. Es tevi miilu. Bahibak. Tave myliu. Saya cintakan mu. Njan Ninne Premikunnu. Wo ai ni. Me tula prem karto. Ana moajaba bik. Kanbhik. Ni mits neki. Ayor anosh’ni. Jeg Elsker Deg. Syota na kita. Inaru Taka. Mi ta stimabo. Doo-set daaram. Iay ovlay ouyay. Kocham Ciebie.

Eu te amo. Te ubesk. Ya tebya liubliu. Volim te. Ke a go rata. Maa tokhe pyar kendo ahyan. Techihhila. Jag alskar dig. Ich lieb Di. Ninapenda wewe. Mahal kita. Wa ga ei li. Ua Here Vau Ia Oe. Nan unnai kathalikaraen. Nenu ninnu premistunnanu. Chan rak khun. Oroaûsu. Seni Seviyorum. Ya tebe kahayu. Mai aap say pyaar karta hoo. Anh yêu em. ‘Rwy’n dy garu. Ikh hob dikh. Mo ni fe. Melinyel.

(A ideia era surrupiar o Muro do Eu Te Amo sem que ninguém percebesse e trazê-lo para cá, minha Fernanda. Mas a segurança em Paris foi tão reforçada depois dos atentados terroristas, que achei mais prudente abortar o plano. Perigava você me visitar na antessala da guilhotina. Foi melhor assim: a peça não ia caber mesmo na sala.

Daí a solução em forma de crônica. Eu te amo em árabe, japonês, tupi, ucraniano – até em élfico. Tem para todos os gostos e línguas. Só releve os possíveis erros de grafia. Não que você não merecesse, mas é que, após o segundo encontro consonantal, me dei conta de que eu também não merecia cotejar tantos dáblios, kás e ípsilons.

Apenas encare cada parágrafo como uma parede da casita que construímos dia a dia. E cada frase como um tijolinho do meu afeto pelas bochechas mais fofas do mundo.)

domingo, 5 de junho de 2016

Maracanazos

Em menos de uma semana, o estupro coletivo sofrido pela adolescente carioca já tinha parado no canto inferior esquerdo – comprovadamente o de menor visibilidade – da capa de um dos nossos principais jornais. Enquanto isso, o terço superior da página era dominado pelo futebol, esporte que costuma alegrar o domingo dos machos.

É assim que as coisas funcionam hoje em dia: toda indignação tem seus quinze segundos de fama (e olhe lá).

Não por acaso Michel Temer chegou a dizer que, para ele, havia no país uma “onda de violência” contra a mulher – onda essa que, segundo historiadores, existe desde que Adão atirou o fruto proibido na cabeça de Eva e a levou desacordada, pelos cabelos, até uma caverna. A rapidez tsunâmica com que crimes e escândalos são descartados pela mídia talvez explique o lapso do presidente interino.

É curioso que de outros lapsos a memória nacional não sofra. Quantos de nós não sabem o significado da expressão “Maracanazo”, com seu emezão e zê espanhol? Pergunte mesmo aos que nasceram bem depois de 1950 e muitos responderão que a palavra é sinônimo de tragédia – uma tragédia que marcou a história não só de uma seleção de futebol, mas também de uma nação inteira.

Quem nunca ouviu falar da derrota de dois a um para o Uruguai na final da Copa, diante de duzentas mil testemunhas no velho Mário Filho?

A comoção gerada pelo inesperado vice-campeonato dentro de casa foi tão grande (ou tornada tão grande), que inspiraria o dramaturgo Nelson Rodrigues a criar o termo “complexo de vira-lata”: “a inferioridade em que o brasileiro – um narciso às avessas – se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”, segundo o próprio escritor.

Não é o caso de alimentarmos ainda mais esse sentimento – mesmo com um crime tão bárbaro (quanto o que vitimou a jovem citada) a nos assombrar. Afinal, abusos como esse acontecem não apenas em nossas favelas ou condomínios de luxo; acontecem também em universidades americanas, cidades alemãs e ônibus indianos. A cultura do estupro está disseminada nas mais diversas latitudes.

Mas não seria o caso, sim, de transformarmos o episódio em trauma que atravessasse gerações? Não seria o caso de cada pai, cada mãe contar essa história de terror aos seus filhos para que eles contem aos filhos deles? Não seria o caso de as escolas incluírem em seus currículos (mais) discussões sobre a violência contra a mulher? Não seria o caso de a imprensa dar cada vez mais espaço para o tema?

Não seria no mínimo educativo que, daqui a quarenta ou cinquenta anos, cada cidadão brasileiro ainda guardasse na memória não a derrota numa partida de futebol – não o sete-a-um de dois anos atrás, por exemplo, edição revista e ampliada do Maracanazo –, mas aquela infame goleada de cinco, dez, vinte, trinta e três a... uma?

Quem sabe assim, um dia, os milhões de treinadores se tornassem também milhões em ação contra o machismo e a misoginia – esses dois brucutus do pensamento que há muito tempo já deveriam ter sido expulsos de campo.