domingo, 28 de fevereiro de 2016

Creepy

Aquele cinema não era minha segunda casa. Era a primeira. Só lá eu conseguia sonhar depois que apagavam as luzes.

Perdi a conta de quantas vezes atravessei a rua sem olhar os carros. Quantas vezes pulei os degraus da entrada como se fosse um coelho atrasado. Quantas vezes escorreguei no piso encerado. Quantas vezes passei o tempo lendo as letrinhas dos cartazes enquanto esperava na fila. Quantas vezes assisti à mão da bilheteira deslizando o ingresso pela fresta no vidro.

Suas unhas sempre cortadas estavam ligeiramente maiores naquela noite.

O detalhe não mereceria um parágrafo de atenção se não tivesse relampeado meus olhos no mesmo instante em que um raio gritou “ação!” e a tempestade entrou em cena.

Deu vontade de ir ao banheiro. Dez minutos para a sessão. Fui tranquilo. O toalete estava às moscas – varejeiras. Só uma lâmpada funcionava – mal. Piscava tanto que não me surpreenderia se batessem a porta e eu ouvisse alguém dizer: let’s play a game. Me tranquei no único reservado. Zíper, alívio, descarga. De repente escutei passos. Ligaram a torneira. A luz apagou de vez.

A água escorrendo era a única trilha sonora.

Como eu não suportava perder nem o curta com as instruções de segurança, fechei o zíper e abri a porta cheio de coragem (não necessariamente nessa ordem). A lâmpada acendeu no ato. Ninguém ali – a não ser minha alma depenada. Lavei as mãos com o sabonete líquido que ainda restava. Não havia papel para secá-las. Aproveitei para ajeitar o cabelo, levemente arrepiado.

Não adiantou nada. O preço da pipoca eriçou cada um dos fios novamente.

Comprei um Halls e corri para a sala. Só dois lugares estavam desocupados: o meu e o do lado. Pus a bolsa na poltrona vazia e uma bala na boca. Imediatamente um gosto amargo roçou a língua e desceu pela garganta – ao mesmo tempo que a escuridão roçou as paredes e desceu até a plateia. A sessão enfim havia começado.

Só que eu não ia aguentar duas horas de saliva sabor breu. Precisava de um refri. Ou de qualquer outra infusão doce. Ignorei os trailers e voltei à bomboniere. Nem sombra do rapaz que tinha me atendido. Minto. A sombra dele estava lá – apenas a sombra. Tentei então o bebedouro: em manutenção. Última alternativa? A chuva lá fora. Mas a entrada principal e as saídas de emergência estavam fechadas.

Eu até teria reclamado com o gerente se ele não tivesse dado o ar da desgraça de um modo tão previsível: dependurado pelo pescoço no lustre do saguão.

A cena me fez lembrar outra coisa que vivia dependurada. Falo da minha bolsa. Tinha esquecido a danada na sala – que se encontrava trancada àquela altura. Sem saber mais o que fazer, gritei hitchcockianamente. Péssima ideia. Uma amostra de ectoplasma surgiu no corredor e resolveu flutuar justamente na minha direção. Era a bilheteira.

Aquelas unhas por pouco não fizeram um estrago. Acordei no minuto certo, salvo pelo rock pesado que o diretor escolheu para embalar os nomes subindo na tela. A maior parte do público já havia deixado o cinema. Cinéfilos mal treinados. Perderam a sequência pós-créditos: eu abrindo a bolsa e dando falta do moleskine onde eu guardava anotações da vida inteira.

Da sinopse de um romance jamais iniciado a rabiscos de crônicas ainda inacabadas, passando pelo rascunho de um thriller menos sobrenatural que presunçoso – com título em inglês e tudo.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Mar aberto

Crail é um vilarejo perdido no litoral leste da Escócia. Foi lá que a apresentadora Mel Fronckowiak conheceu um velho pescador e, ao entrevistá-lo para o programa Destino certo (exibido no canal +Globosat), perguntou-lhe se já tinha pensado em mudar de vida, uma vez que mantinha a mesma rotina havia vinte e tantos anos. A resposta dele: não. Eu tenho meu barco, não preciso de mais nada.

Difícil saber que itinerários aquele capitão e sua modesta nau cumpriram ao longo de duas décadas. Teriam atracado em portos além da imaginação? Içado velas entre o pôr do sol e o nascer da lua? Enfrentado ondas capazes de inundar as nuvens? Cruzado com piratas famosos? Sobrevivido a um desfile de baleias circenses? Ficado simplesmente à deriva catando conchas e estrelas?

Só desejo uma história ímpar ao par em questão. De qualquer modo, um barco é sempre um horizonte.

E todo mundo deveria ter um: barco ou horizonte – dá no mesmo. A possibilidade de se lançar a mares nunca dantes navegados ajudaria muita gente por aí a desencalhar de lugares-comuns, preconceitos, discursos mumificados e de tantos outros redemoinhos que só afogam nossa esperança de ver a humanidade velejando por águas menos turvas.

Remei daquela cidadezinha escocesa até aqui pensando no amigo náufrago que se julga a mais tolerante das criaturas, mas não aceita “o que não é normal”. A homossexualidade é um de seus icebergs. Já lhe joguei várias boias: o ser humano não escolhe a orientação sexual; da mesma forma que não escolhe ser negro, ser alto, ser craque em trigonometria, ser uma lástima com a bola nos pés. Ele nasce de um determinado jeito. É uma condição dele. E o que nos resta é tratá-lo com respeito. Ponto.

Cadê que o marujo agarrou uma boinha?

Ele ainda mergulha fundo na ideia de que “as famílias estão sendo destruídas aos poucos”. Mais boias: de que famílias você está falando? daquelas em que os homens podiam agredir, humilhar, ter amantes e as mulheres tinham que aceitar tudo caladas? daquelas em que o arranjo social era mais importante que o afeto? daquelas em que os filhos “desobedientes” sofriam maus-tratos físicos? daquelas em que conversar sobre qualquer assunto era sobremesa rara nos almoços de domingo? daquelas em que os pais ensinavam o menino a ser “pegador” e a menina a se “preservar” – já que ela podia topar com um rapaz criado igualzinho ao seu rebento?

Infelizmente, o mar está infestado de crusoés: tem o que se queixa de racismo quando é chamado de palmito (mas não lembra em que lavoura seus alvos tataravós trabalharam por livre e espontânea opressão); tem o que combate a criminalidade com o lema bandido-bom-é-bandido-morto (seguido à risca pela polícia brasileira e cuja consequência é a paz que se transpira nas ruas); tem o que repete que não havia corrupção e violência no tempo dos militares (e só vê no dueto censura-tortura uma rima pobre); tem até o que acredita que Hitler era comunista só porque seu partido tinha “socialista” no nome (como se toda moçoila chamada Bela fosse necessariamente uma Gisele Bündchen).

Mesmo com mil guarda-vidas à disposição, esses inquilinos da Lagoa Azul ainda preferem acabar numa ilha deserta, presos a suas âncoras.

Eu sigo no meu humilde barquito e, graças a ele, estou quase aportando no último capítulo do best-seller de Marcia Tiburi: Como conversar com um fascista. Nas piores horas – em que dá vontade de ignorar os gritos de “homem ao mar” e deixar o sujeito ir a pique sozinho –, repito para mim mesmo a passagem na qual somos alertados de que “o diálogo é resistência”, “é prática real de escuta em que a dúvida existe para abrir a si próprio e o outro”, “é aventura no desconhecido”, “é ato político real entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva”.

É às vezes atender a um SOS involuntário de quem ainda não percebeu que está prestes a afundar na própria ignorância.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Às cinzas

Escrevi na última semana que o Carnaval era a festa do troca-troca, na qual o rei virava plebeu e o plebeu virava rei. Pura etimologia. É só dar uma espiadinha nas sapucaís mais badaladas para ver os nobres de todo santo dia exibindo o esplendor vip que deveria estar nos ombros dos anônimos. De repente, o vírus da rainha de bateria – que nessa época se espalha mais do que qualquer zika – contamina notáveis de toda ordem, de atrizes globais a políticos locais.

Um tal de querer repicar mais que os tamborins.
 
Nem um dos poucos camarotes geralmente reservados aos coadjuvantes escapou este ano – e a loiríssima and famosa Grazi Massafera foi eleita a Mulata do Gois. Antes que me digam que não importa a cor e, sim, a simpatia, a graça, o talento: quando novelas, séries, jornais, realities, programas de auditório ou humor usarem esses mesmos critérios para selecionar suas “mulatas” – e chegarem perto de representar a diversidade brasileira –, a gente volta a conversar.

Por ora, me deixem distribuir meus estandartes de ouro.

O de fantasia vai para a Branca Maluca. Um luxo a modelo negra ostentando peruca platinada, camisa da Seleção, frigideira em riste e biquinho à moda selfie. Só faltou o PM na escolta para completar a alegoria. Já o troféu de ala mais bem coreografada vai para a do panelaço, da São Clemente. A escola carioca lacrou ao vestir os brincantes de palhaços verde-amarelos – figurino que dispensa explicações. Quem também dispensa explicações (mas nunca um bom pão com mortadela) é o Bloco Soviético, vencedor da categoria melhor conjunto de comunas bolivarianos esquerdopatas feminazis gayzistas sodomitas comedores de criancinha. A massa não só pintou de vermelho e irreverência as ruas de São Paulo, como ainda garantiu o dez em harmonia e revolução.

Outro estandarte merecidíssimo – o de destrinchar enredos de péssimo gosto – vai para a agremiação Unidos do Bom Senso. Diante do pai branco que fantasiou o filho negro e adotivo de macaco (e acabou sendo acusado de racismo), nota máxima para os que enxergaram ali não falta de carinho, mas uma imensa falta de noção. E sublinharam que é preciso estar constantemente vigilante para se evitar qualquer atitude – mesmo involuntária – que reforce estereótipos e remeta a preconceitos seculares.

Um último prêmio, dedico à Rede Manchete de televisão, que jamais atravessaria o samba a ponto de não transmitir ao vivo os desfiles de escolas tradicionalíssimas como Estácio de Sá e Vila Isabel. Saudade enorme do canal que não fazia da festa mais popular do país – patrimônio cultural de todos os brasileiros – apenas um adereço de sua programação.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Às avessas

Carnaval é a festa do troca-troca. O rei vira plebeu e o plebeu vira rei. Luxo e lixo cabem na mesma lata. Brega é chique e chique é brega. Cara e coroa são as duas faces do mesmo vintém. Tamborins soam e suam like violinos. Macho é igual a fêmea que é igual a macho que é igual a purpurina. O santo cede o altar pro sacana. A desordem veste a farda da lei. O delírio assume a fantasia da realidade.

Esse clima de inversão dos papéis bem que podia transbordar para o ano inteiro. Porque tem sido difícil suportar a ordem imposta pelos dias sem folia.

Os bancos vivem numa eterna terça gorda – batucando recordes de lucros – e o povo paga a conta da crise com os poucos confetes que tem. Vinte e um bilhões surrupiados de uma estatal ganham muito mais espaço nas passarelas midiáticas do que 420 bilhões de impostos sonegados (só em 2015). A mesma Justiça que intima a depor quem desfila por aí com barquinho de cinco mil reais – comprado com nota fiscal no próprio nome – rejeita denúncia do Ministério Público contra passista da Seleção que teria driblado a Receita em milhões. Enquanto isso, certa primeira-dama usa mais vezes as alegorias voadoras do estado do que todos os secretários do marido juntos – só que não é destaque no bloco das manchetes; vem no chão das notinhas mesmo, quase anônima.

Diga, espelho meu, se não há na avenida país mais @#$%& que o meu.

Agora vejam esta maravilha de cenário: Momos em todo o território nacional engolem as chaves das cidades e viram a velha guarda política de cabeça para baixo. O quesito lucros-e-dividendos volta a ser tributado (o que não acontece desde a metade dos anos noventa, quando o mestre-sala FHC os isentou de taxação). Com o aumento da arrecadação, as alas da comunidade e da classe média têm os impostos reduzidos. Sobra até algum pro abadá. Não só a corrupção, como a sonegação se torna de fato alvo dos repiques dos jurados; o dindim recuperado é destinado sem adereços à saúde e à educação. Até aquela primeira-dama resolve sambear pelas ciclovias com sua bike.

Sonhar não custa nada.

Pelo menos enquanto Momozão comanda os desmandos. Ouvi dizer que os cunhas só estão esperando a quarta de cinzas para votar a criação da CPMS: a Contribuição Provisória sobre a Movimentação dos Sonhos. A proposta é pura distopia, já que prevê um mesmo percentual para quem recebe meia cuíca (e sonha com um finde em Paquetá) ou mil (e sonha com um mês em Paris). Minha opinião: a tributação deveria ser mais pesada sobre os contribuintes com maior capacidade financeira e onírica.

Olha a justiça fiscal aí, gente.

À parte um enredo tão kafkiano quanto esse, já se garantiria um dez em evolução se Dona Globeleza abrisse alas para uma discreta desordem em sua grade e transmitisse – da primeira à última escola – os desfiles na Sapucaí. Pode apostar que corações e agremiações de todas as cores explodiriam na maior felicidade.