Não
sei se ele aconteceu quando fui obrigado a torcer contra as meninas na dança
das cadeiras promovida pela loira do shortinho micro, ou quando fui levado a
assistir àquela novela em que a vilã-mor era mulher, a alpinista social era
mulher, a bêbada era mulher, a assassina era mulher – e o único homem realmente
malvadão da história dava uma banana para o Brasil antes de fugir milionário.
Talvez
tenha acontecido quando ouvi um velho sucesso em que valia tudo – só não valia
dançar homem com homem, nem mulher com mulher.
Quem sabe se não aconteceu quando aqueles marmanjos entraram lá em casa. Era noite. Era domingo. Um provocava o outro: chegou o negão. O outro retrucava: negão é teu passadis, ô cearense cabeça chata. Até que o terceiro se meteu: esse aí camufla. No que o quarto mexeu o pezinho em sinal negativo: camufla nada, é muito macho. Só interromperam a discussão para elogiar minha vizinha: eita bicho bão.
Uma
brincadeira inocente, uma coincidência não planejada, uma rima fácil, um apelido
carinhoso, uma cantada ingênua – mas pode chamar de assédio.
Segundo o dicionário, a palavra – que
ganhou os trends graças a uma campanha que tem incentivado as mulheres a
compartilharem experiências de abuso sexual sofridas por elas – designa “uma operação militar ou um conjunto
de sinais em lugar determinado, no qual se estabelece um cerco com a finalidade
de exercer domínio; insistência impertinente; perseguição, sugestão ou
pretensão constantes de alguém em posição privilegiada junto a outrem para
conseguir alguma coisa”.
Convenhamos: o meu, o seu, os nossos neurônios sofrem
esse tipo de cerco desde priscas eras – eras bem anteriores àquela em que se
dizia que abolir a escravidão prejudicaria a balança comercial. E eles o sofrem
trinta horas por dia, oito dias por semana. Das notícias da Monalisa às piadas
do Jô, da santa missa em seu lar aos gols da rodada. Feito minúsculos iraques
de massa cinzenta, são bombardeados full time por drones que tentam convencê-los
de que a vida é desse ou daquele jeito e assim deve permanecer. Você que não
seja chato de contestá-la.
Sereias só podem ser felizes se casarem com
príncipes, ainda que isso custe suas escamas. O que há de errado com crianças ralando
o bumbum na boquinha da garrafa? Tão fofas. Ciclovias e manifestações só servem
para fechar o trânsito. Tem mais é que amarrar no poste: bandido bom é bandido
morto. Viu
aquele menino que nasceu na favela e virou juiz em Brasília? Prova de que
qualquer um, com força de vontade, pode ser alguém. E o cara da novela? Defende os direitos humanos, os
excluídos, mas na verdade é um bandidaço – igualzinho na vida real. Saudade do
tempo em que mulher não ficava ofendidinha com um simples xaveco.
Há quem reclame
que hoje tudo é assédio. Que o mundo anda aborrecido demais. Que o
politicamente correto tirou o humor das relações. Que não se pode abrir a boca,
sob o risco de ser acusado de discriminar os que a mantêm fechada. Que qualquer
fonema emitido na hora e lugar errados pode ser usado contra você num tribunal.
Esclarecendo: não
é que hoje tudo seja assédio. Já era assim na pré-história de anteontem. A
diferença? Hoje o assédio é denunciado, é julgado, é punido. Apesar de espasmos
de retrocesso aqui e ali (reação esperada de quem vê seus privilégios ameaçados),
as pessoas têm tido cada vez menos medo – e mais liberdade – de expressar
ideias e sentimentos antes apenas sussurrados, quando não brutalmente silenciados.
A democracia avança e há de seguir avançando.
Aos incomodados: que
se mudem. Ou que mudem o disco. Vale tudo mais não.
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