Um
filme que abre as janelas de uma casa grande (daquelas com várias suítes,
piscina, dependências) e tira das sombras o convívio aparentemente pacífico
entre uma família de classe média alta e a empregada que lá trabalha. Uma
história de encontros e desencontros entre mães e filhos. Um retrato – com o
filtro do otimismo – de um país em transformação.
Dirigido
e roteirizado por Anna Muylaert, Que
horas ela volta? narra o cotidiano arrumadinho de Val (Regina Casé),
doméstica como tantas outras (ainda) espalhadas por mausoléus Brasil afora. Só
que, de repente, essa vidinha com cada coisa em seu lugar é desarrumada por
Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixa o Nordeste para prestar vestibular
em São Paulo e termina se hospedando no local de serviço da mãe. Bem informada
e com a autoestima de quem não se considera inferior a ninguém, a jovem começa
a questionar o comportamento submisso de Val diante dos patrões, o que acaba
expondo o apartheid ali existente.
Por
contar uma história infelizmente brasileiríssima – sem varrer
para debaixo do tapete o que ainda resta do legado escravagista em nosso dia a
dia –, o longa escolhido para ser o representante brasileiro no Oscar é capaz
de servir de espelho para públicos tão distintos (e distantes?) quanto o do
Morumbi e o da Zona Leste, só para ficar na geografia social paulistana. Improvável
a plateia não enxergar a si mesma nos andares daquela pirâmide de muros quase
inescaláveis há alguns anos.
Quantas
senhoras de bem não se identificarão
com “dona” Bárbara (Karine Teles acertadamente contida, sem as afetações das
madrastas dos contos de fada), a patroa que, de tão “generosa”, trata sua
criada de tantos e tantos anos como um membro “praticamente da família”?
Quantas marias não se reconhecerão na Val, a empregada que, de tão competente,
já “nasceu sabendo sua posição”?
Aqui
um paninho rápido na atuação de Regina Casé: notável sua capacidade de migrar
das cenas bem-humoradas – como a que a traz tentando decifrar o jogo de xícaras
e garrafa térmica com o qual presenteia a dona da casa – para as mais dramáticas
– como a que acompanha a discussão dela com a filha em sua cela, ops, quartinho,
pouco antes de a menina deixar a mansão em meio a uma chuvarada.
Igualmente
notável é a sutileza do roteiro – que não só se destaca por passagens
escancarada e lindamente simbólicas, como quando Val enfim entra na piscina,
mas também por tomadas tão silenciosas quanto expressivas, como aquela em que a
personagem, depois de estender as roupas no varal, resolve sentar-se, fechar os
olhos e descansar brevemente sob o sol.
Outra
sequência que não deve passar entre nuvens – e que só ratifica o cuidado do
roteiro com os detalhes – é a que mostra Val e Jéssica tomando café juntas, nos
minutos finais da projeção: o espectador atento vai reparar que xícaras e pires
não descombinam mais. Discreta metáfora para aquilo que por tanto tempo esteve
fora do lugar (mãe e filha) e agora está onde sempre deveria ter estado. Uma ao
lado da outra.
É
bem possível que alguns – os que não querem enxergar a faxina pela qual o país
começou a passar na última década, e/ou não se conformam que a roupa suja da
senzala esteja sendo finalmente lavada – acusem o filme de apostar ingenuamente
na esperança, ainda mais num momento em que as manchetes só ecoam caos e
crise. Pois eu apostaria também. Especialmente depois de ver, nos classificados,
que os novos imóveis não vêm mais com aquele velho quartinho virado apenas para
a cozinha.
Agora
ele é reversível.
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