Não
podia deixar passar o dia do índio em branco (trocadilhe se quiser): mas é que
eu sou praticamente um caboclinho. Afinal, quando meus pais se conheceram, num
carnaval de mil novecentos e clóvis bornay, pápis envergava o figurino de um
autêntico aborígene, exceção feita ao generoso bigode e ao par de kichutes.
Além
do mais, como ignorar data tão importante, especialmente quando representantes
de várias tribos têm feito manifestações contra a proposta de emenda à
Constituição que transfere para o Congresso Nacional – território onde estão
fincados até a raiz os pés de inúmeros fazendeiros – a prerrogativa de homologação
de terras indígenas?
É
isso mesmo que você leu: querem dar aos tubarões as chaves dos aquários –
pequenas reservas nas quais sobrevivem os nativos que ainda resistem.
Não
bastaram séculos aniquilando povos e culturas inteiras em nome de um progresso com
muitas aspas. Não bastou roubar suas terras, escravizar seus donos, discriminar
seus descendentes. Foi preciso ainda tatuar a palavra holocausto em sua pele:
se no tempo do descobrimento havia três, quatro milhões de índios espalhados
pelo futuro país do futuro, hoje eles não chegam a novecentos mil. E só pouco
mais da metade vive em terras indígenas. Um terço já foi engolido pelas nossas
aldeias de concretos.
Aliás:
é numa dessas aldeias que reside um gentil apresentador de tevê cuja pele alva
não só lhe rende o apelido de palmito, como também horas e horas na terapia
para se recuperar de injúria tão racista. Por que me lembrei dele? Porque o
moçoilo – defensor intransigente da liberdade de expressão de quem usa
mulheres, negros, gays e nordestinos como matéria-prima para piadas de péssimo gosto – agora
resolveu defender os índios.
Dos
próprios índios e de quem está ao lado deles.
Segundo
o sujeito, os progressistas – aqueles que se solidarizam com as causas
indígenas – “querem preservar indio na cultura primitiva deles como se fossem
animais em zoologico”. “Se o homem ocidental tivesse ‘preservado sua cultura’, estariamos
caçando ate hoje”; “alias, caçando pra sobreviver nao por esporte”. [Sic] para
todos os vocábulos não acentuados, o probleminha de concordância na primeira
citação e a ausência da pontuação necessária na última.
[Sic]
maior ainda para as tiradas geniais: quer dizer que primitiva é a cultura que
preserva florestas em vez de destruí-las? que exigir que os índios tenham
direito a uma ínfima fração da terra que já foi inteirinha deles é querer
confiná-los num zoológico? que apinajés, karajás e xerentes vivendo livres em
seu habitat são como animais mantidos em cativeiro? que uma aldeia indígena é
um zoológico? que caçar para sobreviver é sinal de retrocesso e caçar por
esporte, vestígio de evolução?
Parem
a canoa que eu quero descer. E escondam o arco e flecha.
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