domingo, 25 de janeiro de 2015

Relatos selvagens

O filmaço escrito e dirigido por Damián Szifron renderia tantos textos e, consequentemente, tantos títulos para eles que, na incapacidade de escolher um só, deixo todos à disposição do leitor: “V de vingança”, “Um dia de fúria”, “Perto do coração selvagem”, “Instinto selvagem”, “Eles estão descontrolados” e assim até a loucura. Cada um deles ajuda a dar uma ideia do que trata o longa argentino (Relatos salvajes no original).
 
Em seis histórias aparentemente cotidianas – que vão de um sujeito que tem seu carro rebocado a uma noiva que descobre a traição ainda na festa de casamento –, os personagens perdem as estribeiras e passam a agir como se não houvesse a tal lei do amanhã, que em geral nos faz contar até dez antes de voar no pescoço do chefe injusto, de furar os olhos do marido ou marida que nos traiu, de sequestrar e botar no micro-ondas o papagaio do 102, que não para de tagarelar desde a noite passada.

O primeiro e mais curto episódio, que antecede os créditos iniciais, já nos reserva lugar num avião em que todos os passageiros (coincidentemente?) conhecem um mesmo rapaz. O curta funciona como síntese do que veremos a seguir: histórias à beira de um ataque de surrealismo – que, no entanto, jamais deságuam na inverossimilhança. Ali a reação mais destemperada, a revanche mais primitiva, é sempre possível, provável até. Os muros do superego, da razão e do bom senso são derrubados pelos black blocs que residem em cada um de nós.

Além disso, o fato de parecer não haver limites para aquelas criaturas de repente tomadas de cólera – vide o duelo extremamente violento entre dois motoristas no terceiro conto – só amplifica a tensão e a imprevisibilidade das cenas seguintes. E é aí que o filme ganha nervos de thriller, embora as atitudes radicais de seus protagonistas – como as da noiva enganada – eventualmente provoquem risos. Aliás, o humor sangra em várias passagens, como naquela em que um policial pergunta a seus colegas se determinado incidente teria sido crime passional.

Sangram também sutilezas, ainda que o roteiro trilhe o caminho do exagero, às vezes até do absurdo, numa tentativa de esgarçar a humanidade de seus personagens. Uma delas se dá quando o especialista em demolições Simón (Ricardo Darín) prepara a implosão de um prédio em meio a um corredor pouco iluminado, onde piscam minúsculas luzes azuis; luzes semelhantes piscarão novamente em outro momento da trama, a fim de advertirem delicadamente o espectador sobre o que está prestes a acontecer.

O que está prestes a acontecer (e acaba acontecendo com maior ou menor intensidade em cada um dos relatos) se revela não só matéria digna do tabloide mais sensacionalista, como também amostra singular – nem por isso menos real, como temos visto nos noticiários e em toda a História – do que o ser humano é capaz de detonar nas suas horas mais extremas: explosivos de som, fúria e terror.

Somos todos campos minados, afinal. E o filme de Szifron, ao invadir as fronteiras de um território tão instável, prova que sabe bem onde pisa.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Sei lá

É tanta gente que sabe de tudo e de todos que fico na dúvida: ou o Q.I. da população mundial superou o teto da meta – inflacionando o mercado de especialistas em assuntos gerais –, ou o bicho-homem botou para funcionar aquele gene da Mãe Dinah que existe em cada um de nós – provocando a maior concentração de cartomantes por metro quadrado desde que o mundo é mundo.

Me causa um frio no fígado toda vez que o senhor Alguém, baseado somente nas estatísticas do seu achômetro, afirma com aquela certeza xiita que o Fulanildo da Silva – porque presidente da empresa xis ou do país ípsilon – sabia-sim de todas as propinas e demais saliências que aconteciam na segunda sala à direita do sexto andar da subsecretaria da secretaria do departamento do ministério das relações interiores.

E me congela a vesícula sempre que esse mesmo senhor Alguém, ungido em tanta fé, denuncia, julga e condena à pena de morte perpétua o primeiro cristo que lhe dá a face.

Mal sabe ele que a senhora Alguém desvia o troco da padaria para os esmaltes; que o Alguém Júnior passa os fins de semana trancado no quarto vestibulando a anatomia do corpo feminino; que a caçula Alguém já foi muito além do primeiro beijo; que sua santa mãezinha gostou tanto daquela camisola com carneiritos, que mal esperou a loja abrir para trocá-la por uma lingerie de oncinha; que o estagiário – e não o sócio – foi o responsável pelo almoço-surpresa no escritório.

Mal sabe ele, aliás, que desfilou todo sorrisos, nesse mesmo almoço-surpresa no escritório, com um fiapo de alface entre o canino e o pré-molar.

Talvez seja ingenuidade minha acreditar que o Fulanildo da Silva não sabia (ou ao menos não suspeitava) das propinas e demais saliências que aconteciam na segunda sala à direita etcétera, etcétera do ministério das relações interiores. Ainda assim, me soa perigoso mãedinaísmo berrar a gigabytes de distância e sem provas – com requintes de caixa alta – que ELE SABIA ou ELE NÃO TINHA COMO NÃO SABER.

Quem é que sabe o que cada um realmente sabe? O Bonner? O Boninho? O Bial?

Só sei que nada sei, já dizia o filósofo. Ninguém nunca sabe que males se apronta, já escrevia o poeta. Nada sei da vida, vivo sem saber, já cantava a musa. Sabe de nada, inocente, já avisava o compadre. E eu – humildemente inspirado em mentes tão sabichonas – tomo a liberdade de encerrar aqui tanta sabedoria: cuidado e canja não fazem mal a ninguém. Nem ao senhor Alguém.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Reconciliações

Primeiro de janeiro que nada: o ano novo começou mês passado, no último dia 17, quando Barack Obama e Raúl Castro finalmente tiraram a birra do gancho e trocaram duas ou três palavras por telefone, comprometendo-se a derreter um dos derradeiros icebergs da Guerra Fria e restabelecer as relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba, interrompidas havia mais de meio século.

Bem que essa notícia podia derreter também alguns coraçõezitos e inspirar outras reaproximações em 2015: entre israelenses e palestinos, brasileiros e argentinos, nosso futebol e o futebol, pais e filhos que não cruzam a mesma rua, certos políticos e a vergonha na fuça, alguns cidadãos e os livros de História, você e o vizinho.

Ah se eu tivesse o poderio de americanos e aliados. Erguia logo um hiperultrashopping na Faixa de Gaza com uma megapraça de alimentação – religiosamente distribuída entre judeus e árabes, que eu não sou kamikaze. Quem sabe assim, entre chalás e quibes, rugelás e esfirras, o ramadã de paz e amor não acabasse num pessach de abraços.

Abraços que até nossos hermanos merecem, ainda que insistam na piada de que Maradona foi melhor que Pelé. Sugiro não contrariá-los. Vai que é doença.

Falando em doença, que vírus terá enfraquecido o sistema imunológico do nosso futebol? O do amadorismo endêmico? O do calendário morbidamente obeso? O da volantização aguda do meio-campo? Especialistas garantem que o tratamento indicado passa por internação imediata no spa da profissionalização, calendário balanceado e dieta baseada em formação de meias criativos. Assino embaixo.

Assinaria também um decreto que proibisse pais e filhos de acenderem sinais vermelhos entre si. Sob pena de multa impagável e mil pontos na consciência. Permitido mesmo só o verde. Siga em frente, que sou sua faixa de segurança – deveria dizer o pai para o filho, o filho para o pai. Família, embora estrada às vezes esburacada, com uma ou outra lombada no caminho, é sempre via de mão dupla.

Eu digo mão dupla e a malufaria já entende mão grande. Aí não tem saída. Reaproximação, só se for entre os dois pulsos gatunos – luxuosamente adornados com aqueles braceletes prateados que viraram moda em Brasília. O que eu mais gosto neles é a correntinha ligando as argolas. Hype total.

Outra tendência – essa de péssimo gosto – é a tentativa de uns e outros de reviver o verde-oliva. Coisa mais demodê. Aos que apostam nessa cor para os próximos verões, recomendo pegar urgentemente o primeiro DeLorean movido a plutônio e voltar aos porões dos anos sessenta e setenta. Se não achar algum disponível na praça, uma visitinha à biblioteca mais próxima já está valendo.

Agora você: vai continuar nessa de bipolarização com o vizinho por um desentupidor de pia que foi e não voltou? Relaxe. Releve. Restabeleça as relações. O objeto em questão não merece tanta corrida armamentista. Do jeito que vossa excelência tem valorizado esse embargo, até parece que seu roto-rooter de estimação foi parar em Guantánamo.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Um ano sensacionalista

Difícil se jogar nos braços de um ano novo quando o velho ainda mal esfriou. Especialmente se o velho em questão era capaz de nos surpreender dia após dia com manchetes inacreditáveis, que juntavam na mesma sentença sintagmas tão distantes entre si quanto Lulu Santos e dupla sertaneja, Daniel e um roqueiro. (Quem assistiu ao The Voice Brasil entenderá.)

Além do mais, a virada aconteceu na quinta, a sexta morreu enforcada e o domingo – também conhecido como hoje – continua bem vivo. Enfim, já que todo ano que se preza só começa mesmo depois da segunda-feira, quiçá da quarta (de Cinzas), ainda é tempo de aproveitar o restinho de espumante para brindar os momentos mais escalafobéticos dos últimos doze meses.

Se bem que brindar não é bem a palavra quando recordamos o sete-a-um que Schweinsteiger e companhia aplicaram naquele time que vestia a camisa da Seleção. Falando nisso, enquanto eu escrevia a frase anterior, a Alemanha marcava mais um tento. E outro. Outro. Olha o cruzamento: outro. Virou bagunça. Melhor eu apitar o fim dessa lembrança antes que falte linha para tanto gol.

Só não pode faltar linha para: Barrichello campeão. Não sei quando (e se) vou ter outra chance de colocar os dois lado a lado.

Também não pode faltar linha para o tricô. Afinal, nesse ano Félix e Niko se beijaram, George Clooney e Fulana de Tal se casaram, Tim Burton e Antonio Banderas se separaram – de suas respectivas esposas, fique bem claro –, Tio Sam e Tia Cuba reataram. Notinha sobre a Gretchen: consta que a rainha do rebolado não trocou alianças em 2014, mas eu que não ponho o mindinho no fogo por essa notícia.

Bem ou malcasados à parte, notícia mesmo foi o Brasil ter deixado pela primeira vez o mapa mundial da fome, segundo as Nações Unidas. Curioso é essa vitória verde-amarela não ter aparecido na retrô da Globo, diferentemente do “Lepo-lepo” – dancinha que eletrizou os trios em Salvador no último Carnaval –, da segunda gravidez de Kate Middleton e do Emmy Internacional recebido por Roberto Irineu Marinho.

Juro que um dia hei de entender essa lógica de prioridades.

Deve ser mais fácil do que entender como São Paulo (nem tão) de repente (assim) virou sertão. Ou como alguns de seus habitantes cismaram de ocupar as ruas para pedir a volta dos militares. Será que a falta de água e, consequentemente, de hidratação tem a ver com essa inesperada falta de memória e bom senso dos paulistanos? Ou esse Alzheimer sazonal é culpa do uso abusivo do volume morto?

Que a Sabesp se pronuncie.

Enquanto o pronunciamento não vem, uma derradeira madeleine deste ano mais exótico do que qualquer excursão à Tailândia: a noite de Natal lá em casa não teve Simone.