Mês
da Consciência Negra e eu acabei revisitando um texto meu antigo, lá dos
confins de 2012, que tratava das cotas raciais e cujo título era “Famigeradas”.
Em poucas linhas, minha edição dois anos mais jovem (e ainda mal revisada) mostrava
toda a sua indignação com a adoção de políticas de
reserva de vagas para garantir o acesso de negros e pardos a instituições de
ensino superior.
Acusava o Estado de remediar
décadas – senão séculos – de omissão com um paliativo. Sem uma notinha de
vergonha no rodapé, criticava o governo por dar mais chances ao “bacuri” (sic)
que tivera a infelicidade de nascer numa comunidade
carente – de saneamento, escola, hospital, paz, lazer –, mas a felicidade de
ser mais corado que o vizinho.
Sugeria
ainda – ironicamente, claro – que as cotas extrapolassem a senzala das raças e
se expandissem por outras casas-grandes, como o Congresso Nacional: “Que tal
uma reserva de vagas para políticos honestos? Quem sabe assim um dia tenhamos
representantes dispostos a tratar as causas da nossa miséria, e não apenas
preocupados em mal administrar suas consequências”.
Era ou
não era um raciocínio de ostra ao contrário? Daquele tipo que, em vez de
produzir algo belo a partir de uma ferida, gesta preconceitos porque nunca os
sofreu na pele?
Anos (e,
especialmente, algumas leituras) depois, revi minhas ideias. Não dava mais para tolerar
uma universidade formada majoritariamente por brancos, ainda mais num país em
que negros e pardos são a maioria e a miscigenação é regra. Era preciso (re)aproximar
o significante de seu significado: universidade, característica do que é universal. Era
urgente tornar aquele espaço mais plural, mais representativo de nossa
realidade.
Como sublinha o mestrando em
Direito João Telésforo, “trazer a diversidade de
mundos sociais existentes para dentro da universidade é fundamental para que
ela se abra [...] e seja capaz de inovar; onde há diversidade, há muito maior
tendência à criatividade. Ademais, a inclusão dos ‘instrangeiros’
[“estrangeiros” dentro do ambiente acadêmico] poderia incentivar a produção de
conhecimentos e a formação de pessoas [...] mais responsivas às demandas e aos
problemas dos setores excluídos e pouco ouvidos de nossa sociedade”. [1]
Por isso – por acreditar nessa necessidade de se estimular a produção
de outras perspectivas (ou das perspectivas do outro) –, a nova edição de mim
mesmo ganhou um capítulo extra, no qual é defendida a política de cotas inclusive
para a pós-graduação. Segundo Pedro Augusto Brandão, no caso
das faculdades de Direito – área em que é doutorando –, é importantíssima “a
formação de pesquisadores alinhados com temas tradicionalmente invisíveis da
área jurídica”.
Somente assim, continua Pedro, “os atores sociais envolvidos nas
lutas por reconhecimento estarão diretamente envolvidos nas pesquisas
jurídicas. De objeto de pesquisa, poderão passar a sujeitos protagonistas das
investigações acadêmicas”. Desse modo, terão a oportunidade de dar voz a “compreensões
de mundo historicamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a
cosmovisão indígena e a cultura negra”. [2]
A esta altura,
alguém há de ter esperneado que cotistas contribuem apenas para a queda da
qualidade do ensino. Não é bem assim: estudos recentes feitos pela Universidade
de Brasília (UnB), primeira federal a adotar as cotas, apontam que não há diferença expressiva entre as notas de formandos
cotistas e não cotistas. De acordo com Mauro
Rabelo, decano da instituição, uma explicação para esse fenômeno seria o
estímulo aos alunos que ainda estão na educação básica. Ao verem uma chance
real de ingresso na universidade, eles passariam a se dedicar mais. [3]
É
evidente, no entanto, que apenas a reserva de vagas no ensino superior (não só
para negros e pardos, mas também para indígenas e alunos de escolas públicas)
não transformará o Brasil na Disneylândia da igualdade social. Melhorar a
educação básica – que engloba os níveis infantil, fundamental e médio –,
valorizando essencialmente seus professores, é condição igualmente imprescindível
para que um dia tal paliativo não seja mais necessário.