Fernanda
é que me alertou: a tinta da chaleira está descascando. Homessa. Não bastassem
as manchas de quem estoicamente beija a boca do fogão todos os dias, agora
isso. Bateu aquela melancoliazinha. Afinal, estamos juntos desde que saí da
casa dos pais; desde a primeira manhã do resto da vida. Seu apitaço ferve a
água e o espírito. Só o seu cocoricó é capaz de ressuscitar o zumbi que jaz em
mim entre a cama e a cozinha.
Só
eu mesmo para me apegar a um simples objeto, a um mero utensílio doméstico. Um
momento. Só eu mesmo? Não é bem assim. Sei de gente que não só se apegou, como
ainda deu nome a aspirador de pó. E por pouco não leva o mascote para uma volta
no bairro – para uma social básica com o carrinho de feira da vizinha ou com a
magrela recém-reformada do amigo da rua de cima.
Não
cheguei a batizar minha chaleira de estimação, mas dei a ela um significado,
uma razão quase metafísica de existir – o que é bem mais grave. O que é pior
que chegar às vias de fato com a tevê em dia de futebol. É dar brecha para a
danada entrar e não sair mais do seu dicionário particular, aquele calhamaço
invariavelmente em desordem alfabética, escrito num dialeto que só você decifra
(quando decifra), chamado coração.
Atribuir
sentido ao que quer que seja – à bola de gude conquistada naquele recreio
longemente esmaecido, ao botão que solta do paletó a minutos do sim no altar, ao
fusquinha comprado em transpiradíssimas prestações, à poltrona que te ajudou a
tomar mil e duas decisões importantes, à moedinha número um, ao chapéu que te
acompanhou da primeira à última cruzada, a qualquer pedacinho do seu Krypton,
enfim – pode ser tão perigoso quanto nomear aquele vira-lata que insiste em
dormir na sua calçada.
Um
descuido e você está de quatro (cinco, seis...) por uma cômoda ordinária, com a
cara e a voz da Narcisa Tamborindeguy. Sabe de nada, inocente.
Há
quem diga que devamos nos desfazer das quinquilharias que acumulamos para dar
lugar a novas. Até concordo. Sou um entusiasta do clean e da reciclagem. Mas
guardar uma peça ou outra é mais que necessário. Uma hora a memória há de
precisar dessas madeleines para continuar respirando. Salvar uma ou outra
bugiganga – com a devida higiene, claro – é preservar o museu em que vamos nos
transformando desde a primeira chupeta, quando nem sonhávamos
com água na chaleira.