Hoje
de manhã, ao acordar de um sonho estranho, dei por mim na cama transformado em
Walcyr Carrasco. Ele mesmo: o autor da novela das nove.
Não
pensei duas vezes. Corri para o computador. Tinha um capítulo a escrever. O
capítulo em que Félix, nosso malvado favorito, enfim descobriria o amor. O amor
verdadeiro. O amor de uma vida inteira. O amor que o redimiria de todas as suas
vilanias, afetações e caretas. Ou não.
Procurado
pela polícia, o filho predileto de Susana Vieira perambula pelas ruas de Sampa.
Louca varrida, sem eira nem beira – nem um delineador nos olhos. De repente,
quando nada mais parece fazer sentido, prestes a se jogar do alto da ponte
estaiada (que, por contrato, deve aparecer a cada duas cenas), ele ouve uma voz
celestial. Corta.
Félix
surge na porta de um templo onde – paradoxalmente – reina a paz e se escuta gospel
do café ao jantar. A tal voz é a de um velho conhecido, melhor amigo dos tempos
da juventude transviada, das noites oitentistas que varavam provando sutiãs com
ombreiras, calças de lycra apertadíssimas e aquela maquiagem toda trabalhada no
neon.
–
Não tá me reconhecendo, Félix? Meu nome também lembra felicidade...
–
Marquito, meu doce! Quase não te reconheci! Mas cê tá tão diferente!... Gel no
cabelo, sobrancelha feita no lápis, abdômen definido... Tá de deixar qualquer
Saara molhadinho!
–
É o ar seco de Brasília, santa. Faz um bem danado pra saúde. Nem te conto. E
você? Já conseguiu se livrar da chorona da sua irmã e arrombar o cofrinho do
seu pai?
– Nada.
Pápi só tem olhos e bolsos praquela sonsa. Não dá a mínima pra mim. Nem
pirulito de cinquenta centavos. Tanto que até hoje não percebeu que eu torço
pro São Paulo, coleciono toda a discografia da Barbra Streisand e de-tes-to a
programação do Multishow depois da meia-noite. Eu salguei a Santa Ceia. Só pode
ser.
–
Falando em ceia, por que não passa umas noites no templo?
– Mas
que ideia mara! Ninguém vai me procurar aqui. Fico uns meses ajoelhado,
rezando, até a purpurina baixar. Aí eu volto montado no salto agulha pra me
vingar da família Addams, do traficante encantado, da ratinha da minha... eca!
sobrinha, da ex-chacrete pelancuda e de todos aqueles figurantes que acham que
meu hospital é ONG!
– Bicha
má!... Ah, e se por acaso te descobrirem, digo que você encontrou Jesus, que
se converteu, que até já virou pastor.
– Sempre
soube que podia contar com você, Anjinho.