domingo, 26 de maio de 2013

Carrasco por um dia

Hoje de manhã, ao acordar de um sonho estranho, dei por mim na cama transformado em Walcyr Carrasco. Ele mesmo: o autor da novela das nove.

Não pensei duas vezes. Corri para o computador. Tinha um capítulo a escrever. O capítulo em que Félix, nosso malvado favorito, enfim descobriria o amor. O amor verdadeiro. O amor de uma vida inteira. O amor que o redimiria de todas as suas vilanias, afetações e caretas. Ou não.

Procurado pela polícia, o filho predileto de Susana Vieira perambula pelas ruas de Sampa. Louca varrida, sem eira nem beira – nem um delineador nos olhos. De repente, quando nada mais parece fazer sentido, prestes a se jogar do alto da ponte estaiada (que, por contrato, deve aparecer a cada duas cenas), ele ouve uma voz celestial. Corta.

Félix surge na porta de um templo onde – paradoxalmente – reina a paz e se escuta gospel do café ao jantar. A tal voz é a de um velho conhecido, melhor amigo dos tempos da juventude transviada, das noites oitentistas que varavam provando sutiãs com ombreiras, calças de lycra apertadíssimas e aquela maquiagem toda trabalhada no neon.

– Não tá me reconhecendo, Félix? Meu nome também lembra felicidade...

– Marquito, meu doce! Quase não te reconheci! Mas cê tá tão diferente!... Gel no cabelo, sobrancelha feita no lápis, abdômen definido... Tá de deixar qualquer Saara molhadinho!

– É o ar seco de Brasília, santa. Faz um bem danado pra saúde. Nem te conto. E você? Já conseguiu se livrar da chorona da sua irmã e arrombar o cofrinho do seu pai?

– Nada. Pápi só tem olhos e bolsos praquela sonsa. Não dá a mínima pra mim. Nem pirulito de cinquenta centavos. Tanto que até hoje não percebeu que eu torço pro São Paulo, coleciono toda a discografia da Barbra Streisand e de-tes-to a programação do Multishow depois da meia-noite. Eu salguei a Santa Ceia. Só pode ser.

– Falando em ceia, por que não passa umas noites no templo?

– Mas que ideia mara! Ninguém vai me procurar aqui. Fico uns meses ajoelhado, rezando, até a purpurina baixar. Aí eu volto montado no salto agulha pra me vingar da família Addams, do traficante encantado, da ratinha da minha... eca! sobrinha, da ex-chacrete pelancuda e de todos aqueles figurantes que acham que meu hospital é ONG!

– Bicha má!... Ah, e se por acaso te descobrirem, digo que você encontrou Jesus, que se converteu, que até já virou pastor.

– Sempre soube que podia contar com você, Anjinho.

Última cena: Marquito olha Félix no fundo (dos olhos) e lhe oferece uma Bíblia, imediatamente aceita e posta debaixo do braço. Os dois se aproximam em super slow – e se beijam. De pontinha de língua. É o primeiro beijo gay da novela brasileira! A câmera se afasta enquanto os sinos repicam. Fim.

domingo, 19 de maio de 2013

Rieu é o melhor remédio

Já faz um tempinho, mas ainda assim o caso merece registro. Além do mais, eu não podia perder a oportunidade de usar esse trocadilho aí de título. Desperdício de ideia, mesmo as infames, é contra minha religião.

Estava eu na penúltima mordida de um sanduíche do Bob’s – um compensado de pão, dois hambúrgueres e queijo, não necessariamente nessa ordem, nem necessariamente em ordem – quando uma senhorinha de aparência centenária abocanhou o derradeiro pedaço de pizza. Dez minutos para o show.

Pontualmente britânico, embora holandês de nascimento, o maestro e violinista André Rieu subiu ao palco às 19 horas, zero minuto, zero segundo, acompanhado de sua orquestra, digamos, sui generis, vestida como que para um baile no Harmonia Gardens, o babilônico restaurante de Hello, Dolly!

Pois só às 19 horas, 11 minutos, 26 segundos a senhorinha alcançou seu assento, no degrau mais alto do andar mais alto do teatro, a poucos metros de mim. Rieu já estava na segunda ou terceira canção, na oitava ou nona piada, certamente na vigésima careta, e sua fã número um da última fileira ainda recuperava o fôlego da escalada.

Vieram os primeiros acordes de “Nessun dorma” (a famosa ária de Puccini), e Dona Felicidade – assim a batizei depois do espetáculo – pareceu se esquecer de respirar. Só chorava e sorria. Talvez de saudades da Itália, de algum Romeu deixado por lá ou da lembrança de uma novela antiga do Silvio de Abreu.

Ainda em meio aos aplausos, o maestro contou a história de um doente que teria se curado (ou aliviado suas dores, não lembro) graças à música. O sujeito levava para o hospital seus CDs e DVDs favoritos – de algum ilustre violinista? será? – e os escutava entre uma sessão e outra de quimioterapia.

Não sei se o relato é verdadeiro, nem se minha imaginação está inventando o que a memória apagou, mas o teor da conversa era esse. O fato é que não houve como não acreditar no poder medicinal de uma boa valsa quando a orquestra abriu as comportas e deixou o “Danúbio azul” passar. Efeito cocoon: todas as senhorinhas levantaram pra dançar; as viúvas cataram os funcionários do teatro ou o bípede mais próximo, o que estivesse à mão. Só não sobrou pra mim porque me refugiei entre Fernanda e mamãe.

Duas horas e tanto de show, Dona Felicidade continuava fazendo jus ao nome. Não sentou um segundo sequer (nem largou o “pão” que havia tirado pra Gene Kelly). Seu corpo frágil – notinha grave, grave dedilhada num piano desafinado – era o próprio bolero de Ravel: flauta e fumacinha à primeira vista, fanfarra e fogaréu no ato final.

A propósito, para o final – um pot-pourri com “Aquarela do Brasil”, “Tico-tico no fubá” e o clássico teloniano “Ai, se eu te pego” – ficou guardado o melhor: foi eu piscar os olhos e aquela senhorinha de aparência centenária surgiu na beira do palco, lá no gargarejo, jogando beijinhos para o ídolo enquanto acotovelava seguranças e possíveis rivais. Apoteótica.

Para tudo: como é que a danada chegou ali? por onde desceu que eu não vi? Não sei. Não tenho a menor ideia. Juro. Mas isso, cá entre nós, é o que menos importa. Aliás, importa nada. Acabei o concerto querendo saber como eu ia chegar aonde ela chegou.

E não estou falando em ficar tête-à-tête com o violino do André Rieu.

domingo, 12 de maio de 2013

A inimiga da imperfeição

Não sei se é (só) sinal dos tempos ou se estou ficando (mais) chato. Se são as duas coisas. Se não é nada disso. O fato é que, de vez em quando, tenho a sensação de que a vida segue de banda larga, três, quatro, mil gês, e eu continuo insistindo na velha conexão discada. Chego a ouvir aqueles chiados e ruídos. Conectando...
 
... ao primeiro capítulo da novela: é um tal de apresentar todos os personagens de um gole só que por pouco a gente não engasga. Aliás, apresentar e ponto, com um oi, tudo bem, como se chama, prazer. Próximo. E assim vai. Até o último figurante do elenco centenário (de mais de cem atores, fique claro).

O pior é a primeira vez do casal protagonista. Olho no olho; monossílabos nos monossílabos; forró, pagodinho mela-calcinha – às vezes um Roberto Carlos – no último volume (que sinos é relíquia arqueológica)... e os pombinhos estão irremediavelmente apaixonados. Na marra. No muque. Tenham química ou não.

(Hoje em dia o que vale é a física. Parece.)

Combinemos: não dá. Eu não consigo acreditar em ficção que não seja construída linha a linha, parágrafo a parágrafo, página a página. Qualquer boa estória que se preze não deve ter (olha ela!) pressa. Nesse caso, a danada acaba virando vilã – porque transforma o que deveria parecer vida (com suas idas e vindas, sons e silêncios, sortes e reveses) em mero teatro de papelão, perfeitinho demais para o bom gosto de qualquer um.

Me espanta que, cada vez mais, os novelistas de plantão persistam acelerando suas tramas – como se não tivessem oito meses, seis capítulos por semana, para desenvolver cada uma delas. Curioso é que os roteiristas de séries (especialmente as estrangeiras), que em geral têm apenas um episódio por semana e temporadas de quatro, cinco meses se tanto, consigam dar mais tempo ao tempo de suas estórias, o que costuma torná-las críveis – ainda que falem de zumbis ou ETs – e, por isso, mais interessantes.

Que a velocidade é um mantra dos nossos dias, todo mundo sabe. De repente, viramos (quase) todos personagens de uma corrida maluca em que, cá entre nós, a própria corrida é o Dick Vigarista. E ai daquela Penélope que sentar dois minutinhos no banco da praça só pra fazer um pit-stop e ver o Barão Vermelho passar. Puro charme.

Ai de mim então: que ainda sento diante da telinha (ou telona) sem pressa, à espera de um faz de conta que de fato aconteça, que me conecte com um rabisco de verdade, um traço que seja de algo que lembre o que chamamos de vida. A vida de carne, osso e água na chaleira. Com seus chiados e ruídos.

domingo, 5 de maio de 2013

A hora de apagar a velinha

Todo ano é a mesma coisa. Basta maio se aproximar pra pai, mãe, mulher, sogra, irmão, cunhada, amigos, até o poodle da vizinha e o papagaio do zelador começarem o interrogatório sobre o presente de aniversário: o que você vai querer? camiseta? bermuda? tênis? carteira? CDs? DVDs? chocolates? um perfume?

Isso quando não põem o dedo na ferida e perguntam do que estou precisando: meias? cuecas? alguma coisita pro apê?

Ah, e ainda tem a provinha de múltipla escolha a respeito do endereço e afins da comemoração: festinha no play? churrasco na casa dos pais? lanche no shopping? almoço no buffet a quilo? quantos amigos vai chamar? eles podem nesse dia? já confirmaram? cada um paga a sua, né?

É tanta pressão que dá vontade de sumir duas semanas antes do evento e só voltar duas semanas depois.

Mentira: dá nada. É uma delícia ser paparicado pelas pessoas que gostam da gente. Se há uma coisa boa em fazer anos – além de comer bolo e brigadeiro – é ser tratado como o “cara” durante alguns dias. Você se sente o Reymar, o ChatoNaldo, o Thiaguinho Pires, quiçá a Mulher-Pitomba batendo pinta e dando ponto na tevê. Ou será batendo ponto e dando pinta? Whatever.

O fato é: se bobear, até a Regina Casebre te chama prum “Happy birthday to you” – em ritmo de funk ou pagode – no palco do Esfria!

Momento-delírio: o Arlindo Cruzes puxando “E pro Fábio naaaaada?” e a plateia respondendo “Tuuuuudo!”, enquanto invadem o cenário a bateria da Beija-Flor com uma faixa e os dizeres “Beija-Flora”, um trio de repentistas de Campina Grande, o primeiro quarteto sertanejo universitário de Goiânia – resultado da fusão de duas duplas decadentes – e os MCs Coringa, Pinguim e Espantalho.

Onde é que eu faço o sinal do Batman?

Mudando de canal e voltando pro interrogatório: pai, mãe, esposa e etcéteras, seria muito mais fácil tomar uma decisão sobre o presente se as opções fossem mais criativas. Tipo: uma casinha em Orlando pros fins de semana e feriados; uma Ferrari na garagem; um cruzeiro de seis meses pelo Mediterrâneo (de primeira classe, claro); até um ano de supermercado grátis tá valendo.

A comemoração? Que tal um show exclusivíssimo do Paul McCartney ou do Elton John só pra família e amigos na HSBCDEFG Arena?

Outro momento-delírio. Tenho dado turbinas demais à imaginação. Deve ser a época do ano, alguma virose, excesso de amendoim no cajuzinho, sei lá. Agora, sem brincadeira: o que eu quero mesmo, lembrancinhas à parte, é estar junto das pessoas que gosto – falando (mais) besteira, rindo bastante, beliscando uns docinhos, dançando até sem saber dançar. Não importa o endereço.

Se bem que uma recepçãozinha no Copacabana Palace não cairia mal. Coisa simples, sem luxo, low profile – só pros quinhentos mais chegados.