quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Dercy de mentira

Minha tia Dercy saiu da gaiola cedo. Sujou a boca de batom bem antes de o Bicho Comeu pôr as ombreiras de fora, cantou mais alto que o coral das meninas de Petrópolis e chamou mais atenção que as Irmãs Cajazeiras, o padre Marcelo e Maria Madalena juntos. A quem atirasse a primeira pedra, ela retribuía com meia dúzia de sinais gráficos: #$%@&!

Ainda na adolescência, titia quebrou uma garrafa de cachaça na cabeça de seu pai, um bebum de língua presa que sonhava ser presidente do Brasil. A porrada foi tão forte que o velho não teve chance de fazer o quatro − no dois, ele morreu. E ela, assassina por acidente, teve de fugir do Arkansas. Tomou o primeiro furacão e aparatou na cidade grande.

Perseguida pelo FBI, pela Liga das Senhoras Católicas e por Willy Coyote, tia Dercy fez uma plástica que a deixou irreconhecível, com a cara daquela atriz, a Tati Périssé. Não satisfeita com a mudança da fuça, mudou o nome também. Passou a se chamar Heloísa Siqueira; Lolô para os íntimos (ou seja, toda a humanidade).

Com apelido tão fofo, não foi difícil Lolô conseguir um emprego de bilheteira no teatro mais sujo da Praça Tiradentes, naquela época "o" endereço nobre do Rio de Janeiro (até a ascensão da Barra e do Leblon, claro). Ela fez tanto sucesso na boca − e na mão − do caixa que a plateia não assistia mais às peças. Ficava ali mesmo, no saguão de entrada, ouvindo suas piadas. Foi aí que Boni Bolacha, dono do estabelecimento, teve a ideia genial: levar tia Dercy para o palco.

Em duas semanas, Lolô virou a estrela da Broadway tupiniquim. Dois meses depois, já brilhava no cinema, contracenando com Grande Oscar, Otelito, Fernanda Montebranco e outros astros do Sistema Solar. O ápice de sua carreira foi a vitória por unanimidade no Troféu Perereca da Vizinha, na categoria melhor atriz que utiliza a língua brasileira de sinais.

Infelizmente, o final de sua estória não foi nada alegre ou apoteótico. Graças à Dona Censura, uma velha invejosa da ditadura alheia, tia Dercy teve de (novamente) fugir; dessa vez, do país. Passou vários anos na França como uma dançarina decadente do Moulin Rouge. Só após o fim do regime totalitário e a lulalização do Brasil, os parisienses puderam finalmente extraditá-la para cá. "Xô, Perereca, xô, Perereca!", comemoravam diante do Arco do Triunfo.

Hoje titia não vê, não escuta, não fala − se comunica apenas por sinais. Sobrevive seus últimos dias numa casinha humilde, toda estropiada (a casinha ou tia Lolô, o adjetivo serve para ambas), na cidade que a pariu, à espera de um reajuste no bolsa-dentadura e de uma improvável visita de Maria Adelaide Amaral, novelista famosa, que lhe prometeu escrever sua biografia.

3 comentários:

  1. Olá :)

    E como a história dela é emocionante...
    Afinal, não são todos que conseguem chegar ao centenário, com toda aquela energia e vontade que Dercy tinha! Ainda não assisti o especial (já que aqui em Portugal, estreia tudo atrasado, hehehe) mas espero sinceramente que a retrate bem!

    Beijinhos

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    www.jehjeh.com

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  2. Gostei do post - homenagem á Dercy ..seguindo seu blog , passa no meu

    http://andyantunes.blogspot.com/

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