De
um lado, meia dúzia de famílias bem nutridas e fortemente armadas (inclusive de
medo). De outro, multidões de famintos jogadas à própria sorte. No meio, um
muro.
O
leitor exausto do noticiário não precisa se preocupar: não vou falar da crise
dos refugiados na Europa, nem do edifício que o pato Donald quer levantar entre
os Estados Unidos e o México. Também não vou dar pitaco nas tretas entre os moradores
daquele condomínio de luxo e da favela ao lado. O assunto de hoje é um filme de
zumbi. Isso: aquele subgênero cinematográfico que mistura gente (quase) morta e
apocalipse.
A
distopia nunca lembrou tanto a realidade.
Escrito
e dirigido por Jonathan Levine – baseado no romance de Isaac Marion –, Meu namorado é um zumbi (Warm bodies, 2013) conta a história de
amor proibido entre o morto-vivo R (Nicholas Hoult) e a moça viva Julie (Teresa
Palmer). Qualquer semelhança com a famosa peça de Shakespeare não é mera
coincidência: até a clássica cena do balcão, em que Romeu vai ao encontro de Julieta
– arriscando-se a ser descoberto pelos familiares dela – é aqui ressuscitada.
Pode
soar improvável, mas o fato é que a soma das duas tragédias – a que vitimou os
apaixonados na obra do Bardo e a que mergulhou o mundo no armagedom – resulta
numa das comédias mais românticas a que já assisti. Mérito de um roteiro que, nos
minutos iniciais, faz o espectador devorar as vísceras existenciais de R. Por
meio de uma bem-humorada narração em off, ouvimos o próprio cadáver dizer o
quanto se sente solitário, o quanto quer se aproximar das pessoas, o quanto
deseja se conectar a elas – sentimentos que qualquer um de nós já experimentou.
Afora o detalhezinhoinho de ele estar morto e o público, vivo, a identificação
é imediata.
Amenizam
ainda o aroma de carne vencida as canções pop que comentam algumas sequências,
como “Hungry heart”, de Bruce Springsteen (o título é autoexplicativo), e “Patience”,
dos Guns’n’Roses, cujo verso “If I can’t have you right now, I’ll wait, dear”
ecoa o que R pensa enquanto vela o sono de sua amada. Além desses hits – que
não estão ali só para vender a trilha na Amazon, mas também para ajudar a contar
a história –, tiradas como o “You are hot” dito pela melhor amiga de Julie (ao ver
maquiado o frio-mas-galã defunto) contribuem para suavizar o climão de fim dos
tempos.
Tantas
fofices, porém, não atrapalham aquilo que faz do filme de Levine um digno representante
do legado de George A. Romero, cineasta que há quase meio século lançou A noite dos mortos-vivos (Night of the living dead, 1968). Como
bom herdeiro dessa tradição, Meu namorado
é um zumbi também se alimenta das entranhas de uma narrativa fantástica
para digerir a época em que está inserido.
E
não só a descrição que abre este texto comprova isso.
É
também ilustrativa, nesse sentido, a cena em que R observa centenas de mortos que
– por motivos óbvios – não interagem com quem está ao redor. De repente ele
sente saudade de quando, no mesmo espaço, observava centenas de vivos que – por
motivos de eu-não-largo-meu-smartphone-nem-morto – não interagiam com quem
estava ao redor.
Outro
vestígio de que estamos diante de uma obra atenta aos temas relevantes de seu
tempo é que um dos sintomas de que os finados (spoiler! spoiler!) aos poucos
recuperam os batimentos cardíacos tange a comunicação (ou a falta dela): os
grunhidos são substituídos paulatinamente por palavras e frases. Quem duvida de
que esse elogio à capacidade de se expressar e de se relacionar com o outro – um
sinal da reinserção dos zumbis não só na sociedade, mas na própria humanidade –
é uma crítica a esta era na qual as pessoas mal se escutam e se entendem, na
qual o “diálogo” muitas vezes se resume a uma troca de figurinhas rupestres no
WhatsApp?
Ao
reunir essas e outras metáforas – como o casaco vermelho de R ou o sangue que
se espalha na água após um tiro, ambos provas de vida –, Meu namorado é um zumbi transforma sua hora e meia de horror doce
em alegoria de um mundo que, mesmo após uma História de tantos totalitarismos,
ainda não se decidiu entre a intolerância e a fraternidade, que insiste em
continuar errando nesse entrelugar, como o saguão do aeroporto em que residem
vários dos walking deads mostrados no
longa.
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