Companhias
aéreas americanas acabam de criar uma classe inferior à econômica: a econômica
básica. Os passageiros que optam por ela só têm direito a uma bagagem de mão, a
ser acomodada sob o assento; não podem usar o maleiro superior. Também não
podem escolher o lugar. Essas novidades vão na mesma direção da cobrança (por
fora) da comida servida a bordo – já comum em alguns países – e da prometida
oferta de lugares em pé (!), com a qual se pretende ampliar a venda de tickets
por voo. Segundo as empresas, essa segmentação da cabine em subclasses é uma
“tendência” que visa “maximizar a receita” e “propiciar grande valor” aos
acionistas nos próximos anos.
Do
jeito que as coisas estão, não vou me espantar se num futuro próximo inventarem
uma tarifa extra para o viajante ter acesso ao banheiro ou à máscara de
oxigênio – quiçá ao próprio oxigênio. É assim que funciona um mundo cada vez
mais regido pela lógica do lucro, onde governos são patrocinados por corporações
(entre elas as companhias de aviação): nele o direito de hoje pode ser o
privilégio de amanhã.
Nele
não surpreende um jornal de grande circulação – que nada mais é que uma empresa
sustentada por outras empresas, os anunciantes – botar aspas na palavra
“direitos” ao se referir às férias e ao décimo terceiro, como se ambos fossem
privilégios de uma elite e pudessem ser extintos a qualquer momento, sob a
alegação de que atrapalham o crescimento econômico porque diminuem a
competitividade do país frente a nações cujos trabalhadores não contam com
essas “regalias” (minha vez de botar aspas).
Não
esqueço o dia em que esse mesmo jornal lembrou que certos países asiáticos
conseguiam ser mais competitivos do que os europeus por não terem restrição
legal para o número de horas trabalhadas. Provavelmente os donos da publicação ainda
estavam sob o efeito do slogan “Online, on time, full time”. Certamente desconheciam
o que significa para um francês o flanar, ou para um espanhol a sesta.
Ainda
nesse mundo em que leitores são convencidos pelo noticiário de que seus
direitos são privilégios, não surpreende uma revista de alcance nacional –
igualmente uma empresa sustentada por outras – estampar na capa um
septuagenário Mick Jagger e sugerir que continuar trabalhando até a pós-velhice
pode ser uma ótima ideia, como se todo brasileiro contasse com a fortuna do inglês
ou pudesse escolher quando pendurar a guitarra; e mais, como se todo brasileiro
alcançasse os 65 anos que a reforma da Previdência pretende estabelecer como
idade mínima para a aposentadoria.
Só
um dado: na periferia da cidade de São Paulo, a expectativa de vida em 2015 – em razão da violência e do difícil acesso a leitos hospitalares – não chegava aos sessenta anos. Interpretem.
Interpretem
ainda um ministro da Saúde que – num momento de crise econômica, quando
deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis, e não o contrário – critica
o tamanho do Sistema Único de Saúde (SUS) e afirma que os direitos previstos para
a área na Constituição são financeiramente insustentáveis. Interpretem também um
ministro do Supremo que – nesse mesmo momento de crise, quando, repito,
deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis – defende a privatização do
ensino superior com o argumento de que o Estado não tem mais condições de custear
integralmente a educação, devendo priorizar, assim, os níveis fundamental e
médio.
Minha
humilde interpretação: no orçamento não cabem o SUS (que atende os mais pobres)
nem a universidade pública (hoje frequentada por muitos alunos de baixa renda, os
cotistas) porque têm de caber, prioritariamente, bilhões de reais para
socorrer operadoras de telefonia à beira da falência e reajustar os já altos
salários do Judiciário. Ou: é para isso que serve congelar investimentos em
saúde e educação por duas décadas – garantir verbas para os amigos empresários
e para os colegas magistrados, que hão de interpretar as leis a favor desses e
de outros privilegiados de sempre.
Não
por acaso, os oito homens mais ricos do planeta concentram o mesmo patrimônio dos 3,6 bilhões mais pobres. A “tendência” seguida não apenas por aquelas
companhias aéreas – proteger os acionistas da casa-grande à custa do bem-estar
e da segurança de quem viaja na senzala – só ajuda a aprofundar essa desigualdade;
e, se não for revertida, vai levar a humanidade ao século passado para repetir,
como farsa, uma famosa tragédia – protagonizada não por um avião, mas por um
navio que diziam ser inafundável, onde sobrava espaço para os luxos de uma meia
dúzia.
A venda de comida "por fora" seria só em outros países? Nunca viajou pela Gol? Quando preciso usar a Gol levo meu sanduiche.
ResponderExcluir