domingo, 19 de fevereiro de 2017

Retrocesso a jato

Companhias aéreas americanas acabam de criar uma classe inferior à econômica: a econômica básica. Os passageiros que optam por ela só têm direito a uma bagagem de mão, a ser acomodada sob o assento; não podem usar o maleiro superior. Também não podem escolher o lugar. Essas novidades vão na mesma direção da cobrança (por fora) da comida servida a bordo – já comum em alguns países – e da prometida oferta de lugares em pé (!), com a qual se pretende ampliar a venda de tickets por voo. Segundo as empresas, essa segmentação da cabine em subclasses é uma “tendência” que visa “maximizar a receita” e “propiciar grande valor” aos acionistas nos próximos anos.

Do jeito que as coisas estão, não vou me espantar se num futuro próximo inventarem uma tarifa extra para o viajante ter acesso ao banheiro ou à máscara de oxigênio – quiçá ao próprio oxigênio. É assim que funciona um mundo cada vez mais regido pela lógica do lucro, onde governos são patrocinados por corporações (entre elas as companhias de aviação): nele o direito de hoje pode ser o privilégio de amanhã.

Nele não surpreende um jornal de grande circulação – que nada mais é que uma empresa sustentada por outras empresas, os anunciantes – botar aspas na palavra “direitos” ao se referir às férias e ao décimo terceiro, como se ambos fossem privilégios de uma elite e pudessem ser extintos a qualquer momento, sob a alegação de que atrapalham o crescimento econômico porque diminuem a competitividade do país frente a nações cujos trabalhadores não contam com essas “regalias” (minha vez de botar aspas).

Não esqueço o dia em que esse mesmo jornal lembrou que certos países asiáticos conseguiam ser mais competitivos do que os europeus por não terem restrição legal para o número de horas trabalhadas. Provavelmente os donos da publicação ainda estavam sob o efeito do slogan “Online, on time, full time”. Certamente desconheciam o que significa para um francês o flanar, ou para um espanhol a sesta.

Ainda nesse mundo em que leitores são convencidos pelo noticiário de que seus direitos são privilégios, não surpreende uma revista de alcance nacional – igualmente uma empresa sustentada por outras – estampar na capa um septuagenário Mick Jagger e sugerir que continuar trabalhando até a pós-velhice pode ser uma ótima ideia, como se todo brasileiro contasse com a fortuna do inglês ou pudesse escolher quando pendurar a guitarra; e mais, como se todo brasileiro alcançasse os 65 anos que a reforma da Previdência pretende estabelecer como idade mínima para a aposentadoria.

Só um dado: na periferia da cidade de São Paulo, a expectativa de vida em 2015 – em razão da violência e do difícil acesso a leitos hospitalares – não chegava aos sessenta anos. Interpretem.

Interpretem ainda um ministro da Saúde que – num momento de crise econômica, quando deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis, e não o contrário – critica o tamanho do Sistema Único de Saúde (SUS) e afirma que os direitos previstos para a área na Constituição são financeiramente insustentáveis. Interpretem também um ministro do Supremo que – nesse mesmo momento de crise, quando, repito, deveríamos aumentar a proteção aos mais vulneráveis – defende a privatização do ensino superior com o argumento de que o Estado não tem mais condições de custear integralmente a educação, devendo priorizar, assim, os níveis fundamental e médio.

Minha humilde interpretação: no orçamento não cabem o SUS (que atende os mais pobres) nem a universidade pública (hoje frequentada por muitos alunos de baixa renda, os cotistas) porque têm de caber, prioritariamente, bilhões de reais para socorrer operadoras de telefonia à beira da falência e reajustar os já altos salários do Judiciário. Ou: é para isso que serve congelar investimentos em saúde e educação por duas décadas – garantir verbas para os amigos empresários e para os colegas magistrados, que hão de interpretar as leis a favor desses e de outros privilegiados de sempre.

Não por acaso, os oito homens mais ricos do planeta concentram o mesmo patrimônio dos 3,6 bilhões mais pobres. A “tendência” seguida não apenas por aquelas companhias aéreas – proteger os acionistas da casa-grande à custa do bem-estar e da segurança de quem viaja na senzala – só ajuda a aprofundar essa desigualdade; e, se não for revertida, vai levar a humanidade ao século passado para repetir, como farsa, uma famosa tragédia – protagonizada não por um avião, mas por um navio que diziam ser inafundável, onde sobrava espaço para os luxos de uma meia dúzia.

E faltava para os botes que salvariam as vidas da maioria.

Um comentário:

  1. A venda de comida "por fora" seria só em outros países? Nunca viajou pela Gol? Quando preciso usar a Gol levo meu sanduiche.

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