Ben
Cash (Viggo Mortensen) não quer ver os filhos crescendo num mundo em que
felicidade virou sinônimo de “Ganhei o novo iPhone no Natal”, em que ser e
consumir passaram a ocupar o mesmo espaço no dicionário. Por isso, cria os seis
rebentos na floresta. Lá eles plantam, caçam, malham, fazem escalada, estudam
física e filosofia, leem os clássicos e não
comemoram a chegada do Papai Noel – preferem celebrar a vinda do Titio Noam à
Terra, num sete de dezembro.
Uma
família que festeja o aniversário de Chomsky no lugar da data mais comercial do
ano merece todo o meu respeito. Diz o bom velhinho que cultuas e te direi quem
és: um superpai. Super mesmo, a ponto de o filme escrito e dirigido por Matt Ross
ter sido batizado Capitão Fantástico –
nome tão stan-lírico, que periga atrair os distraídos ao cinema para conhecer o
futuro novo integrante dos Vingadores.
Mas
não. O herói aqui não voa nem veste paletó de ferro. É super por tratar seus
filhotes como adultos. Nunca esconde a verdade, por mais dura ou embaraçosa que
seja. Pode ser o suicídio da mãe deles (o que leva a trupe a deixar seu
refúgio), pode ser o significado da palavra estupro, que rende uma cena
divertida com a caçula Nai (Charlie Shotwell) graças à maneira direta com que Ben
tira as dúvidas da menina. O contraste dos Cash com os primos, criados como se
fossem desmanchar no primeiro sopro de realidade, ilustra como muitas vezes retardamos
o amadurecimento das crianças – e até as infantilizamos mais – ao cultivar
tabus e preconceitos.
Não
deve ser coincidência que ainda vague por aí tanto marmanjo incapaz de discutir
abertamente determinados assuntos.
Outro
poder que faz de Ben um superpai: ele não aceita respostas fáceis. A certa
altura, pede a Kielyr (Samantha Isler) que fale sobre o romance que está lendo (Lolita, de Nabokov), e a filha lhe
oferece um dos adjetivos mais preguiçosos e vazios que existem: interessante. Resposta
errada, bebê. Esqueceu que o vocábulo orna a lista de termos proibidos por ser quase
uma não palavra? A mocinha, então, tenta driblar a curiosidade paterna repetindo
o que leu. Resposta errada de novo. Papai não quer resumo. Quer uma análise de
verdade, com opinião baseada em argumentos. Tanta (saudável) insistência depois,
a adolescente enfim deixa a superfície e mergulha na interpretação, revelando,
entre outras coisas, que simpatizou com o professor Humbert, embora ele aja
como um pedófilo. Por quê? Porque a história é contada a partir do ponto de
vista dele.
(Diz
aí: não seria bom dividir a mesa com familiares que, educados desde berço, debatessem
arte ou política como gente grande e não empacassem no “Discordo”, no “É minha
opinião” ou no “Chola mais”?)
Parentes
e parênteses à parte, as impressões de Kielyr sobre o livro ecoam o que o
espectador vê na telona, num instigante exercício de metalinguagem: até que
ponto simpatizamos com o protagonista porque a performance carismática de
Mortensen nos leva a isso? não poderíamos igualmente enxergá-lo como um irresponsável
que põe em risco a segurança dos filhos ou os priva do direito de frequentar
uma escola?
O
avô das crianças enxerga o genro exatamente assim. Tanto é que tenta a guarda
delas. Justamente por se opor a Ben quanto à criação dos pequenos, Jack (Frank
Langella) tinha tudo para ser o Caveira Vermelha do nosso Capitão. Não é. O
roteiro que dispensa maniqueísmos e a interpretação do veterano ator desenham o
sujeito como alguém realmente preocupado e amoroso com os netos.
A
sofisticação do texto escrito por Ross surge ainda em sequências como aquela na
qual Rellian (Nicholas Hamilton) começa a tocar percussão e Cash, em vez de reprimir
o filho, passa a batucar junto, mostrando sua capacidade de se adaptar a
qualquer ritmo – ou circunstância – em prol das crias, numa sugestão discreta
do roteiro sobre o desfecho da narrativa.
Outra
passagem que sinaliza o cuidado do cineasta com sua obra, agora na direção, traz
Ben entoando um discurso resignado, aparentando desistir de certa missão. A
fala inteira é dita enquanto o encaramos pelo retrovisor do ônibus que conduz –
uma pista elegante de que aquele não é o superpai com o qual já nos acostumamos,
mas seu eu invertido. Logo que ele se volta para os filhos, manda às favas o
palavrório típico dos conformados e acelera rumo a seu destino.
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