Amanhã
é aquele dia em que muitos vão se lembrar de quando corriam descalços na rua, jogavam
queimado no play, passavam as manhãs perdidos na Caverna do Dragão, varavam madrugadas
devorando fantasminhas com um joystick, viajavam para o outro lado do mundo ao
lado de jaspions e gyodais, morriam de vergonha da mamãe e do papai puxando o
parabéns da Xuxa, faziam de um tabuleiro o jogo da (sua) vida.
Sorte
a minha estar entre esses cuja caixa-forte de memórias felizes é bem maior que
a do Tio Patinhas. Uma turma que, apesar de já ter deixado Oz e suas mágicas há
algum tempo – de já ter vivido trinta e tantos outubros –, ainda guarda com
carinho cada um dos tijolos amarelos que ajudaram a pavimentar sua estrada até
aqui.
Pena
que nem todas as estradas recebam um acabamento semelhante; algumas colecionam
tantos buracos que invariavelmente causam acidentes e fazem vítimas.
É
o caso das ruelas percorridas por aqueles jovens que mal dobraram a esquina da
infância com a adolescência e já abandonaram a criança que um dia existiu neles.
Em seus bolsos não restou um centavo de memória feliz – apenas a lembrança do
guri que só corria descalço porque não tinha o que calçar; que jamais brincou
num lugar tão seguro quanto um play; que passava as manhãs perdido entre
arranha-céus de lixo catando uns trocados; que varava madrugadas no chão
esperando os tiros cessarem; que só viajava quando lhe ofereciam um teco (e não
era de pirlimpimpim); que morria de vergonha de não saber dizer o paradeiro da
mãe e o nome do pai.
Que
jogava um War cujo tabuleiro era o próprio cotidiano.
Recentemente, um arrastão de
manchetes levou muita gente a demonizar esses adolescentes em razão dos crimes
praticados por eles numa famosa praia carioca. Psicopatas, gritaram uns. Não têm
caráter, berraram outros. Como se de repente um surto de psicopatia e
mau-caratismo tivesse atingido apenas meninos pobres, negros e moradores da
periferia – meninos cujo caminho até aquela areia nunca chegou perto do tapete
macio por onde um dia deslizamos nossos autoramas.
(Só um parêntese de esclarecimento: tentar
entender por que este ou aquele jovem ingressou na tripulação do Capitão Gancho
não significa defender a impunidade. Toda pirataria deve ser combatida e castigada.
No entanto, mandar para a prancha o pequeno Alma Negra sem compreender a origem
de sua vilania seria tão inócuo quanto tratar uma febre sem curar a infecção.)
Enfim, que a data a ser comemorada
amanhã vá além de saudades coloridas e álbuns desbotados. Que seja também um
cantinho do pensamento para todos nós. Não vai fazer mal nenhum dedicarmos um
minuto de silêncio às crianças que – ao tirarem a cartela do revés no Banco
Imobiliário da vida – tiveram mais que suas infâncias roubadas.
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