domingo, 28 de setembro de 2014

Zona eleitoral

Que o horário político é um prato cheio de promessas vazias, qualquer um com mais de oito bits de memória sabe. Até o leitor daquela revista cujo nome é o verbo ver na terceira pessoa do imperialismo afirmativo. Ainda assim, mesmo correndo o risco de ser vencido pela indigestão logo no primeiro turno, não resisto a uma provinha dessa iguaria típica, servida gratuitamente ao povo brasileiro a cada dois anos.

Falando em iguaria, me causou uma azia danada topar com um candidato que, na tentativa de se tornar mais conhecido, espalhou uma enquete sobre qual o seu doce favorito para o lanchinho da tarde: pé de moleque, pudim ou goiabada com queijo? Peraí. Como é que alguém pode sacrificar o voto por um sujeito que não põe sorvete de flocos ou bolo de rolo nem no top três?

E eu achando que surreal era o Rio ser governado mais quatro anos pelo Pé Grande.

Grande, aliás, tem sido o número de candidatos defendendo a família, os bons costumes e a intervenção do Estado na poupança dos cidadãos. Há quem julgue necessária até uma ocupação militar nessa região mais vulnerável ao fluxo de (pecados) capitais. Fuja desses malafaias. Caso contrário, não restará cofrinho livre de confisco – e o Banco Central se converterá na única coisa, por estas bundas, com alguma autonomia.

Palavra bonita essa: autonomia. Quem gosta muito dela é uma das presidenciáveis, famosa por ser mais flutuante do que o câmbio. Já perdi a conta de quantas vezes a ex-ministra mudou de ideia sobre o casamento gay nos últimos cinco minutos. Fidelidade ali só ao coque. Por isso não me surpreende que ela sugira tantos plebiscitos; e que venha a criar, caso eleita, o Mais Plebiscitos.

Um deles bem que poderia tratar da famigerada meritocracia. Não tem faltado candidato por aí enchendo a boca de Cinicol Plax para dizer que o regime de metas e a remuneração por produtividade melhoraram a educação no estado A e a saúde no município B. Que tal, então, estender esse modelo de gestão tão bem-sucedido às assembleias legislativas, à Câmara, ao Senado e ao gabinete do Executivo?

Nossos nobres representantes teriam seus salários reduzidos ao piso do funcionalismo público (ao que ganha um professor ou um médico em início de carreira) e passariam a receber um bônus – um décimo quarto, por exemplo – se atingissem determinados índices acordados previamente, se cumprissem uma porcentagem mínima das promessas feitas por eles mesmos. Seria o Meritocracia para Todos.

Certeza de que um plebiscito desses – para implantar programa tão democrático – não precisaria de segundo turno. Confirma?

domingo, 21 de setembro de 2014

Sonho de uma noite de verão

E eu achando que ainda havia um William Wallace debaixo daquelas saias.

Juro por Paul (e John e George e Ringo): por um instante acreditei que a Escócia deixaria o Reino Unido e abriria uma vaga para o Brasil. Já tinha até marcado com meu neuro a cirurgia de inversão dos lados do cérebro. Queria estar o quanto antes pronto para a mão inglesa.

Não via a hora de trocar o relógio da Central pelo Big Ben e, por tabela, o atraso tipicamente carioca pela pontualidade britânica. Cansei de chamar os amigos para aquele churrasco de domingo e ouvir dos que só chegavam no fim da festa, bem depois da sobremesa, que preferiam a picanha malpassada.

Minha educação praticamente anglicana me impede de repetir o que eu dizia a eles.

Mary Poppins, culpada pelos meus bons modos, sugeriria sugarmente que eu voltasse ao delírio para contemplar a troca da Guarda – e da Rio-Niterói pela Tower Bridge; da Baía de Guanabara pelo Tâmisa; do Aterro pelo Hyde Park; da Praça Saens Peña, da Praça Varnhagem, da Praça é nossa pela Trafalgar Square. Viva o humor inglês.

Viva também o futebol inglês. Não o da seleção, mas o da Premier League. Estádios teatros, gramados tapetes, craques artistas. Um Brasileirão de Rolls-Royce, sem os flanelinhas da Cêbêefe. Só não sei ainda se meu coração vermelho-cruzmaltino combina mais com o red do Manchester, do Liverpool ou do Arsenal.

Sei é que o sonho não acabou: bastou eu tirar a dupla cidadania para receber uma cartinha de Hogwarts e ingressos para a próxima Copa de Quadribol. Pena que no caminho até King’s Cross topei com Jack o Estripador. Aí só me restou o papel de vítima em mais um caso de Sherlock Holmes.

Elementar, meu caro leitor: depois disso tudo, o imigrante aqui foi deportado de sua ilha da fantasia. Olhei pela janela – era a Tijuca de todos os dias. De todas as praças. Do busão que rasgava a rua fugindo dos passageiros, como era o costume. Não tinha dois andares nem a cor da cruz de São Jorge. Mas parecia estar a serviço de Sua Majestade. Levava nas costas um adesivo imensamente sugestivo: keep calm and carry on.

Voei para a cozinha e acendi o fogo. Precisava urgente de um Earl Grey.

domingo, 14 de setembro de 2014

Incêndios

Lá pelas tantas de Esperando Zilanda, romance de Tamara Sender (Annablume, 2010), Estela lembra ao amigo José, com quem fala apenas por e-mail, que ainda existem chamas no mundo; que edifícios – como o da repartição em que ela trabalhava – pegam fogo; que há por aí “labaredas, saídas de emergência, mãos dadas, lances de escada, alarmes e alardes, gritos, fumaça, tudo fora dos padrões comerciais”.

Autodeclarada bomba em caixa de fósforos, Estela/estrela é dessas chamas: faísca num firmamento afogado em cinzas.

Numa época em que não se comover com os discursos do papa, o PIB da Suazilândia e as eleições nas Ilhas Maurício pode soar como pirraça ou indolência, ela foge sem cerimônia da voz do William Bonner. Não quer ouvir o Jornal Nacional. Simplesmente não quer. Prefere jornais velhos e cafés frios.

Enquanto os outdoors do senso comum enaltecem a perseverança, o esforço e a superação – atitudes que para a moça só aumentariam nosso desgaste cognitivo –, ela defende a resignação como ato heroico. A desistência como gesto muito mais humilde. Nobre até. Não por acaso o fato de reconhecer a existência de “histórias magníficas de boicote a si mesmo” a leva a admitir que au-to-fla-ge-la-ção, “palavra de respeitosa divisão silábica”, poderia fazer parte de uma lista de vocábulos felizes.

Falando em lista, a de suas dificuldades para lidar com as coisas ditas mais simples vai longe. Contrariando as bulas de felicidade, Estela considera a gravidez uma invasão de privacidade e o contato diário/compulsório com seres humanos algo extremamente nocivo à saúde. Nada a deprime mais do que contribuir para a perpetuação da espécie. A não ser, talvez, uma praça de alimentação cheia de pessoas trocando presentes de Natal.

Ou a tevê ainda acesa no meio da madrugada. Olimpíadas ao vivo. A atleta com a tão sonhada e suada medalha de ouro no peito. A bandeira verde-amarela tremulando o hino nacional. Os locutores gritando Brasil mil vezes seguidas. Os recordes quebrados. As histórias edificantes. As gagueiras intencionais. Os infartos iminentes. E então Estela se pergunta: o que leva uma pessoa a dedicar a vida ao salto com vara?

Poucas vezes conheci protagonista tão deliciosamente desprovida de paciência para céus, luas, estrelas ou quaisquer grandiosidades e lirismos, o que explica, aliás, o desgosto que sente pelo próprio nome. Raras vezes encontrei narradora tão obstinadamente disposta a desarrumar – com tantas entrelinhas de ironia – o “ambiente de acontecimentos retumbantes” em que vivemos.

Logo, não surpreende que – apesar ou por causa dessa infinita disposição para a desordem – ela use o título de seu diário para sublinhar a rotina de esperar a empregada, aquela que vem toda semana para pôr as coisas no lugar, uma das poucas criaturas capazes de alertá-la para sutilezas da vida como o Vidrex: o Veja específico para limpar vidros e afins.

Surpreende menos ainda que cative o leitor – em especial aquele mais atento aos sinais de fumaça que escapam pelas frestas do noticiário, mais arredio ao mundo das exclamações pré-fabricadas – e o conduza sem alarmes ou alardes pelas páginas do nosso absurdo cotidiano. Onde quase sempre parecem faltar saídas de emergência.

domingo, 7 de setembro de 2014

O dia da dependência

Há seis anos escrevi um texto com o mesmo título. O blog era o Ultramuito, que ainda deve estar por aí, vagando morto-vivamente na rede. O Sete de Setembro também caía num domingo, e o blogueiro aqui reclamava do dia sem rodada do Brasileirão por causa do jogo da Seleção contra o Chile, pelas Eliminatórias da Copa. O técnico da vez – não, não estamos no set de Feitiço do tempo – era o Dunga.

Tentando fugir dos clichês verde-amarelos, eu aproveitava a data para listar as coisas das quais era dependente, das quais não conseguia me libertar nem com o grito do Ipiranga. O Campeonato Brasileiro era um deles – e continua sendo. A diferença é que agora, por força das circunstâncias cruzmaltinas, estou viciado numa gramita mais pesada, com estádios e jogadores muitas vezes reprovados pela Vigilância Sanitária da Fifa: a Série B.

Melhor mudar de erva, digo, de assunto.

Naquela crônica, eu lembrava ainda a dependência que sentia dos Beatles, das almôndegas preparadas pela mamãe, das doses semanais de cinema, das bobagens faladas com os amigos mais próximos, dos vídeos raríssimos assistidos no Youtube, das novidades de Orlando. Tais substâncias permanecem em minha dieta e delas dificilmente vou me livrar. Já as aceitei como temperos essenciais da vida e pretendo consumi-las até onde o fígado aguentar.

De outras, porém, finalmente bradei independência: da novela das oito, por exemplo. Afora o fato de agora ela ser das nove, não consigo mais me dedicar de corpo e neurônios a uma história que leva oito meses, seis dias por semana e mil e um lugares-comuns para chegar ao último capítulo com beijo técnico, casamento na Igreja de Nossa Senhora do Projac e criança recém-nascida de dez quilos, oitenta centímetros e diploma do Tablado.

Outra vitória pessoal, que exigiu muita perseverança e Rivotril, foi ter me curado definitivamente da compulsão pelas últimas notícias dos outros no Orkut. Atualmente, só trago – com moderação – o que compartilham no Face. Exceto, pleaaaaase, aqueles joguinhos para os quais os amiguinhos insistem em enviar convitinhos. Eles (os joguinhos, os convitinhos, os amiguinhos, não necessariamente nessa ordenzinha) dão uma raivinha que – que é mais saudável eu deixar pra lazinho.

Mas claro que nem tudo são abstinências e diminutivos. Há flores também, como a minha Fernanda, com quem casei faz quase três anos e de quem não desejo um segundo de privação. Dessa metrópole, aliás, a colônia localizada a oeste do meu peito não tem a menor intenção de declarar independência.