E
pensar que os Beatles cogitaram ir até o Himalaia tirar fotos para um disco que
levaria o nome da mais alta montanha da Terra. Mas os prazos – sempre eles –
estavam tão apertados, que os rapazes resolveram simplesmente atravessar a rua
em frente ao estúdio que os abrigou por quase dez anos e batizar o álbum de Abbey Road.
Resultado:
o que tem de turista engarrafando a capital inglesa para registrar seus
pezinhos na mais famosa faixa de pedestres do mundo... É só dar um google para
saber por que Paul, John, George e Ringo se tornaram os quatro cavaleiros do
Apocalipse de onze entre dez guardas de trânsito londrinos.
Long
and winding roads à parte, o caso me fez acender o sinal amarelo. Quantas vezes
não provocamos congestionamentos quilométricos em nossas vidas apenas porque encasquetamos
que a tal da Dona Felicidade mora numa cobertura de seiscentos metros quadrados
na esquina da Quinta Avenida com a Champs-Élysées.
Pode
morar. Acho até que mora. Mas esse não é seu único endereço. Senhora de posses,
abastada de todos os nossos sonhos mais megassênicos, ela tem casa de campo, de
praia, chalé na montanha, apê na Vieira Souto, mansão nos Jardins (da
Babilônia), palacete em Marte, castelo nos anéis de Saturno, ilha particular em
Alfa Centauro.
Mas
tem também conjugado na Tijuca, quarto e sala no Catete, quitinete em Copa. Tem
até sobradinho na subida do Vidigal.
Dona
Felicidade não guarda cadeira; é nômade por natureza. E, de repente, não está
tão longe quanto imaginamos. Quem sabe ela não acorda do nosso lado todos os
dias, nas bochechas ainda sonolentas de quem divide (disputa?) o lençol conosco; de quem pincela a Becel no pão de forma enquanto boceja as primeiras notícias da manhã;
lê a crônica da Martha como se o domingo não escondesse uma segunda; lava a
louça do almoço lembrando a última viagem (e a enxuga planejando a próxima); vai
ao cinema ver aquele adorável filme de robôs gigantes por pura solidariedade; faz
cafuné e segura nossa mão sempre que o time perde; encerra as discussões com uma
trufa no lugar do ponto.
Zapeia
o Discovery a semana inteira em busca de (mais) um episódio perdido do Vestido ideal – mesmo jurando já ter
encontrado o marido ideal.
Fê
– para os íntimos – é a prova final, sem direito a segunda época, de que não
precisamos atingir o pico de um monte distante, aparentemente coberto de
algodão, para alcançar sua doce companhia. A escalada aqui é outra. Dispensa tantos
apetrechos e cilindros de oxigênio. Exige apenas que deixemos a rua livre, o sinal
verde e o coração permanentemente aberto ao trânsito de coisas boas.