Daqueles
instantes de epifania: secando o chão da cozinha, me dei conta de que viver é
enxugar. A pia depois de lavar a louça, o rosto depois de fazer a barba, o
cabelo depois de tomar banho, o suor depois de correr na esteira, a lágrima depois
de ver filme triste, o texto depois de rabiscar mil adjetivos.
As
horas depois de perder tanto tempo.
Quantos
Natais não festejados por causa de mal-entendidos familiares; quantas happy
hours não curtidas por causa de horas extras desnecessárias; quantas
risadas não dadas por causa de choro protocolar; quantos amigos não reunidos
por causa de solidão ranzinza; quantas ruas não exploradas (a pé) por causa de
ônibus vazio no ponto; quantas histórias não descobertas por causa da velha
preguiça de ouvir.
Quantos
bons romances não lidos por causa de novela ruim; quantos filmaços não vistos por
causa de blockbusters genéricos; quantas canções dos Beatles não degustadas por
causa do sucesso dadaísta da estação; quantos ceviches, tabules e temakis não experimentados
por causa do arroz e feijão de todo dia; quantas viagens não feitas por causa
da velha preguiça de descobrir.
Quanto
pôr do sol não apreciado por causa das janelas fechadas.
Fechadas
por medo de chover, de molhar o chão da cozinha de novo (do novo?) e ter de secar tudo outra vez. O medo e a preguiça – a velha
preguiça – de suar, de chorar, de reescrever o texto quantas vezes ele exigir, de
enxugar todo o excesso, de cortar cada adjetivo – até que reste apenas o que é
substantivo.
Os
Natais, mas também as briguinhas que aproximam; as happy hours, mas também a hora extra indispensável;
as risadas, mas também o choro que ensina; os amigos, mas também a solidão que faz pensar; as
ruas a pé, mas também o ônibus com ar-condicionado; os livros, mas também as novelas com
Odete Roitman; os filmaços, mas também os blockbusters com personalidade; as canções
dos Beatles, mas também os ilariês de pular em festa ploc; os ceviches, tabules e
temakis, mas também o arroz e feijão de mãe.
E ainda as histórias de amor e vingança, as viagens de avião e bicicleta, o pôr do sol onde a gente estiver, as janelas abertas: por onde há de entrar não só a chuva que lava a alma, mas também o cheiro da terra molhada – que enxuga o coração e o revigora para o próximo dilúvio.
E ainda as histórias de amor e vingança, as viagens de avião e bicicleta, o pôr do sol onde a gente estiver, as janelas abertas: por onde há de entrar não só a chuva que lava a alma, mas também o cheiro da terra molhada – que enxuga o coração e o revigora para o próximo dilúvio.
ficou muito bom o texto
ResponderExcluirTexto maravilhoso, me deixou com um sorriso no rosto!
ResponderExcluirisso sim é humor inteligente.
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