domingo, 27 de janeiro de 2013

Santos e carangos

Adoro a seção de cartas de jornais e revistas. Geralmente é o espaço dos periódicos com mais ideias em conflito por centímetro quadrado. Vira e mexe pesco duas ou três opiniões bem diferentes sobre o mesmo assunto, o que quase sempre rende uma boa discussão entre meus neurônios de direita, esquerda, centro e periferia.

Quase porque minha última vez no maravilhoso mundo dos leitores rendeu, ao contrário, uma unanimidade. Todos os neurônios ficaram indignados com um sujeito que, igualmente indignado, deu à luz a seguinte pérola: “Enquanto o rei Roberto Carlos desfilava sua riqueza [referia-se a seu Lamborghini] pelas ruas da Urca com seus seguranças, outro grande rei – que não tem medo de sair às ruas, está sempre junto às pessoas, faz de sua casa o quintal de todos – se matava de trabalhar para ajudar os desabrigados de Xerém, que sofreram com as chuvas do final do ano: Zeca Pagodinho”.

Eu completaria, se fosse o autor do disparate: enquanto Roberto passeava em seu conversível e Zeca prestava solidariedade, estava eu sentadinho no sofá, bonitinho, de banhinho tomado, todo cheirosinho, diante do meu notebook, redigindo esta mensagem tão desprovida de noção.

Ou será que a Madre Teresa aí deixa de ir ao cinema, assistir ao futebol, tomar a cervejinha com os amigos, comprar a tevê de LED, fazer a excursão à Disney toda vez que um terremoto sacode o Haiti, um furacão arrasa Nova York ou um tsunami atinge o sul da Ásia?

Será que o nosso Gandhi também sai às ruas, está sempre junto às pessoas, faz da sua casa o quintal de todos?

Quem sabe. Pode ser. Vai que.

Vai que eu esteja fazendo mau juízo do leitor. Que ele tenha imposto a si mesmo pobreza eterna, seja o maior São Francisco de sua paróquia e sirva sopinha quente para os meninos de rua do seu bairro. Que os desprovidos de noção sejamos eu e meus neurônios, especialmente os de direita, mas também os de esquerda, centro e periferia.

Fique claro que eu e meus neurônios de todos os partidos não estamos defendendo a indiferença às catástrofes que nos espreitam diariamente. Estender a mão – quando possível – é mais que necessário; é imprescindível. Só achamos que o caríssimo leitor misturou santos e carangos. Que tem a ver o caviar do homem que deixa a vida o levar com o bibi do herói esperado por toda mulher?

O fato de um dilúvio varrer um município da Baixada – e um ilustre morador socorrer os vizinhos – não guarda qualquer relação com o hábito do cantor de perambular sobre quatro rodas pela Zona Sul do Rio. A atitude do artista não impede que o problema causado pelas chuvas seja resolvido. A não ser que ele seja confrontado com a tragédia e claramente se omita.

Fora isso, é no mínimo canalha jogar nas costas de alguém – só porque rico – a conta de um auxílio que também não prestamos. Como se a fortuna alheia (em princípio, honesta) fosse, em si mesma, ofensiva; um álibi muito conveniente para nosso comodismo, nossa negligência, nossa inação. O Rei não tem dindim pra comprar mil Cadillacs? Então ele que ajude! Não sou eu – que estou pagando a primeira das 26 parcelas de um calhambeque usado – quem vai bancar o salvador da pátria!

Obviamente, o mesmo raciocínio não vale se o artista em questão for do tipo que veste a fantasia de esse-cara-sou-eu durante a campanha para prefeito ou vereador e tira a maquiagem assim que é eleito. Mas aí já é outra história. Que envolve responsabilidades assumidas, obrigações não cumpridas e afins típicos da política tupiniquim.

Fica para a próxima seção de cartas.

3 comentários:

  1. Achei muito digna a atitude do Zeca Pagodinho que mostrou ser um ser humano da mais alta qualidade.

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  2. Pra mim é o tipo de coisa sem a mínima noção. Mas é isso, falar todo mundo sabe. Quero ver é fazer!

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