Adoro a seção de cartas de jornais e revistas. Geralmente é o espaço dos
periódicos com mais ideias em conflito por centímetro quadrado. Vira e mexe pesco
duas ou três opiniões bem diferentes sobre o mesmo assunto, o que quase sempre rende uma boa discussão
entre meus neurônios de direita, esquerda, centro e periferia.
Quase porque minha última vez no maravilhoso mundo dos leitores rendeu,
ao contrário, uma unanimidade. Todos
os neurônios ficaram indignados com um sujeito que, igualmente indignado, deu à
luz a seguinte pérola: “Enquanto o rei Roberto Carlos desfilava sua riqueza
[referia-se a seu Lamborghini] pelas ruas da Urca com seus seguranças, outro grande rei – que não tem medo de sair às ruas, está sempre junto
às pessoas, faz de sua casa o quintal de todos – se matava de trabalhar para
ajudar os desabrigados de Xerém, que sofreram com as chuvas do final do ano:
Zeca Pagodinho”.
Eu completaria, se fosse o autor do disparate: enquanto Roberto passeava
em seu conversível e Zeca prestava solidariedade, estava eu sentadinho no sofá,
bonitinho, de banhinho tomado, todo cheirosinho, diante do meu notebook,
redigindo esta mensagem tão desprovida de noção.
Ou será que a Madre Teresa aí deixa de ir ao cinema, assistir ao
futebol, tomar a cervejinha com os amigos, comprar a tevê de LED, fazer a excursão
à Disney toda vez que um terremoto sacode o Haiti, um furacão arrasa Nova York
ou um tsunami atinge o sul da Ásia?
Será que o nosso Gandhi também sai às ruas, está sempre junto às
pessoas, faz da sua casa o quintal de todos?
Quem sabe. Pode ser. Vai que.
Vai que eu esteja fazendo mau juízo do leitor. Que ele tenha imposto a
si mesmo pobreza eterna, seja o maior São Francisco de sua paróquia e sirva sopinha
quente para os meninos de rua do seu bairro. Que os desprovidos de noção sejamos
eu e meus neurônios, especialmente os de direita, mas também os de esquerda,
centro e periferia.
Fique claro que eu e meus neurônios de todos os partidos não estamos
defendendo a indiferença às catástrofes que nos espreitam diariamente. Estender
a mão – quando possível – é mais que necessário; é imprescindível. Só achamos
que o caríssimo leitor misturou santos e carangos. Que tem a ver o caviar do
homem que deixa a vida o levar com o bibi do herói esperado por toda mulher?
O fato de um dilúvio varrer um município da Baixada – e um ilustre
morador socorrer os vizinhos – não guarda qualquer relação com o hábito do cantor
de perambular sobre quatro rodas pela Zona Sul do Rio. A atitude do artista não
impede que o problema causado pelas chuvas seja resolvido. A não ser que ele seja
confrontado com a tragédia e claramente se omita.
Fora isso, é no mínimo canalha jogar nas costas de alguém – só porque rico – a conta de um auxílio que também não prestamos. Como se a fortuna alheia (em princípio, honesta)
fosse, em si mesma, ofensiva; um álibi muito conveniente para nosso comodismo, nossa negligência, nossa inação. O Rei não tem dindim pra comprar mil Cadillacs? Então ele que
ajude! Não sou eu – que estou pagando a primeira das 26 parcelas de um
calhambeque usado – quem vai bancar o salvador da pátria!
Obviamente, o mesmo raciocínio não vale se o artista em questão for do tipo
que veste a fantasia de esse-cara-sou-eu durante a campanha para prefeito ou
vereador e tira a maquiagem assim que é eleito. Mas aí
já é outra história. Que envolve responsabilidades assumidas, obrigações não
cumpridas e afins típicos da política tupiniquim.