“Um
homem na estrada recomeça sua vida
Sua
finalidade: a sua liberdade
Que
foi perdida, subtraída
E
quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que
se recuperou e quer viver em paz
Não
olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!”
Os
versos de Mano Brown que o ex-presidiário Cristiano (Aristides de Sousa) canta a certa
altura de Arábia podem até soar como
sinopse para o filme. Mas o longa escrito e dirigido por João Dumans e Affonso
Uchoa não se resume à história de um homem contada por ele mesmo num caderno
velho (descoberto por um adolescente que o lê) – o que vemos na tela é também a
história de um povo, é a história de um país.
Um país que não ganha o noticiário e é tão cheio de
nuances quanto o tecido que Cristiano manuseia na fábrica em que trabalha. Um
país que não estrela a novela e é tão eclético quanto a trilha sonora que reúne
– além do já citado rapper – Noel Rosa, Dorival Caymmi, Raul Seixas, Renato
Teixeira e até um representante do folk americano (Jackson
C. Frank). Um país,
portanto, que muito brasileiro desconhece e é povoado por milhões de outros
brasileiros que provam diariamente, com trabalho e desilusão, o quão cínico é
enaltecer a meritocracia num lugar em que as oportunidades são tão desiguais.
Para quem não sabe, meritocracia é o discurso que
coloca toda a responsabilidade do sucesso ou fracasso nas costas do indivíduo, ignorando
a estrutura de poder construída e preservada para manter os privilégios de
poucos à custa dos direitos – subtraídos – de muitos. De tão fantasiosa, ela
parece um conto de Sherazade: se o cabra não enriqueceu, se não conseguiu ser
“alguém na vida”, é porque não deu duro, não se esforçou o suficiente, não
acordou tão cedo quanto deveria.
Arábia é um tapa na cara de quem
acredita nessa fábula das mil e uma noites. Um tapa com luva de operário.
O duro cotidiano do personagem principal não
impede, porém, que Dumans e Uchoa vistam luva de pelica ao cuidar dos aspectos
estéticos de sua obra.
Planos como o que observa o uniforme de Cristiano e
uma garrafa d’água, ou cenas como a do celeiro (na qual o protagonista negocia
com o dono de uma fazenda), são tão bem fotografados que só lhes faltam moldura
e parede. Como se não bastasse a beleza dos quadros, eles ainda funcionam como
sínteses do Brasil extremamente injusto retratado pelos cineastas. A tela de
natureza-morta revela que a vida de muitos brasileiros consiste apenas, na
melhor hipótese, em trabalho (o uniforme) e sobrevivência (a água). Já a
sequência no armazém desvenda o que os “economistas” da mídia hegemônica
costumam celebrar como “livre” negociação entre patrões e empregados: de um
lado, o proprietário com as máquinas e os frutos sob seus pés; de outro, o funcionário
sem nada (nem carteira assinada), em busca de umas caixas de mexerica para
vender na estrada; enquanto os dois negociam no interior do galpão (imerso em
sombras), a plantação verdeja lá fora tão ensolarada quanto o dia.
É impossível não enxergar os contrastes do país no
contraste entre as imensas paredes escuras do depósito e a paisagem iluminada
que se vê pelo também imenso vão aberto.
Mais contundente do que as imagens só mesmo a
narração em off que conduz o espectador por quase o filme inteiro. Permitir que
ouçamos o que Cristiano sente e pensa sobre sua trajetória talvez seja o maior
mérito do longa. Raras vezes é dado ao oprimido o lugar da fala – a chance de
narrar a própria história. E Arábia não
só faz isso, como ainda leva essa experiência ao limite no último ato, ao
excluir a música e os sons diegéticos, conferindo à voz de Cristiano todo o
protagonismo.
Não deixa de ser significativo que essa passagem – que
coincide com o momento de epifania do rapaz, quando ele toma consciência de que
sempre viveu “no engano”, de que sempre foi tratado como mais um “cavalo
cansado” – aconteça em Ouro Preto, cidade mineira que um dia testemunhou um
movimento que se insurgiu contra a exploração e cujo lema era “liberdade ainda
que tardia”.
Significativo e tristemente irônico, já que a
liberdade para o trabalhador brasileiro – o destino de Cristiano sugere –
aparentemente só vem quando a vida se aposenta.
Texto lindo!
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