domingo, 24 de fevereiro de 2013

João Sorrisão

O nome dele é Capitolino Mário Leão. Mora no 206. Alguns o chamam de Capitão, como o zelador. Outros (o melhor amigo, por exemplo), de Mário. Uma tia caquética, que aparece uma, duas vezes por ano, de Lininho. A mulher (aff!), de Leãozinho. Mas nada disso importa muito. O que chama a atenção nele é uma certa instabilidade – uma espécie de amizade colorida com o mundo.

Ontem mesmo. Estava eu esperando o elevador, quando ele chegou do mercado. Seu Jair correu para acudi-lo: “Ajuda com as sacolas, Capitão?” “Quero, sim, por favor.” “E o nosso, Mengão? Vai ou não vai?” “Vai! Com aqueles dois no ataque, não tem pra ninguém!” “Opa!” “Domingo que vem vamos comer bacalhau, pode anotar!”.

Acho que o (aff!) Leãozinho não tinha me notado. Pelo menos até entrar no elevador. Antes que eu dissesse bom di..., me cumprimentou pela última vitória do Vasco – e ainda me convidou para uma bacalhoada que a esposa prepararia no domingo seguinte. O danado sabia que eu era cruzmaltino. Agradeci, mas tive que recusar. Aniversário do sobrinho no mesmo dia, coisa e tal. Fica pra próxima.

Pois a próxima aconteceu há pouco, quando eu passava em frente ao ponto de ônibus, aquele bem perto da padaria. Peguei o malandro saltando do coletivo com um boné do Botafogo, todo íntimo do motorista: “Hoje é Fogão na cabeça, Mané! A urubuzada que se cuide! O Seedorf vem aí e o bicho vai pegar!”.

Hã?

Não era possível. Em coisa de 24 horas, o Capitão, Mário, Lininho, (aff!) Leãozinho tinha sido rubro-negro, vascaíno e botafoguense. Eu nunca havia presenciado vira-casaquite tão aguda. Só faltava ele... Não, não faltava. Bastou o camarada topar com a tia caquética – à sua espera na calçada do prédio – para ele encher a cara de pó de arroz.

Ah! Me subiu uma vontade de desmascará-lo!... Não só pelo simples prazer de vê-lo sem máscara, com a bandeira do Bangu na mão. Mas por uma questão de cidadania. É: cidadania. O Capitão Fanfarrão era candidato a vereador. E – agora eu sabia por quê – liderava todas as pesquisas.

Sorte dele que a vontade me desceu logo. Despencou, na verdade. De repente me ocorreu que talvez fosse interessante ter um vizinho parlamentar e tão... eclético – futebolisticamente falando. O Capitão, Mário, Lininho, (aff!) Leãozinho, se eleito, ia acabar precisando de um time de assessores, quiçá um elenco inteiro, para atender a tantas torcidas. Um time remunerado, claro. Quem sabe galáctico.

Hum.

Pensando bem, acho que o meu sobrinho não ficaria muito chateado se eu me atrasasse um tico para festinha dele: o moleque sabe que eu resisto a croquete, cachorro-quente, refrigerante, até a bolo de chocolate e brigadeiro – mas jamais a uma boa bacalhoada.

(Ainda mais se oferecida pela primeira-dama de um cruzmaltino tão ilustre.)

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Amor e filmes

Fernanda e eu saímos da sessão de Amor com os corações calados. Levou um tempo pra ela (ou eu, não lembro) dizer o óbvio: que a Emmanuelle Riva não pode perder o Oscar de melhor atriz pra Jennifer Lawrence, a bonitinha mas ordinária do bonitinho mas ordinário O lado bom da vida.

Como de costume, procuramos um café após o cinema. Depois de uns dez minutos examinando o menu, escolhemos o mesmo sanduíche, apenas com pães diferentes: ela, o australiano; eu, a baguete. Ela ainda pediu um chai, e eu, uma média. Nada especial. O bonitinho mas ordinário de sempre. O lado bom da vida.

Até um casal de idosos (bem idosos) sentar na mesa ao lado: ele quase de frente pra mim; ela quase de frente pra Fernanda. Não precisaram do cardápio. Foram direto no pão na chapa, no expresso e no bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Dois garfos, por favor.

Achei esse Lincoln o filme mais cacete da história, ela resmungou. Já estava ficando abafada com tanto gabinete, político e a Sally Field à beira de um ataque de nervos. Não sei por que o presidente não fez aprovarem uma lei que a abolisse da Casa Branca. Ele foi um herói mesmo; merecia estar na nota de cem dólares, não na de cinco.

Gostei do Day-Lewis. O peso de ser o homem mais poderoso do mundo estava na expressão cansada, na voz cansada, no corpo cansado. Que ator.

Prefiro o Jean Valjean, dos Miseráveis. Daria todos os prêmios pra ele.

Boba. Está dizendo isso só pra me provocar. Pensa que eu não sei? Te conheço há cinquenta anos, esqueceu? Os miseráveis é musical bom de ouvir, mas de ver... Muitos closes. Aliás, o diretor não tirava a câmera do rosto dos atores um segundo. Estava ficando abafado com tantos poros e olhares sofridos.

Fernanda e eu mal conseguíamos cuspir um monossílabo. Continuamos quietos, só escutando. Os pães, os expressos e o bolo chegaram.

Meu favorito é o Pi. Só acho uma pena não terem indicado o tigre, o velho lembrou. E o moço que filmou a história do Irã, dos americanos fugindo. Pelo menos o careca gente boa, o avô da Miss Sunshine, o que fez o produtor de Hollywood que ajudou a CIA, ele foi... Adoro aquele sujeito!

Pra mim, o melhor de todos é o Django. Delícia acompanhar aquele crioulo metido a branco explodindo com casa-grande e tudo no final. Há séculos não sentia tanto prazer.

Um gole de silêncio.

No cinema, querido; no cinema.

Também gostei do Jan-go – com “d” mudo, ele continuou (com ar de alívio). Ainda que eu prefira o outro do Tarantino, o Kill, Kill... Aquele em que a menina põe fogo no Hitler e nos outros nazistas dentro do cinema. E o herói marca o vilão com uma suástica na testa. Obra-prima, obra-prima.

Fim da sessão e do lanche. Pagaram a conta e se levantaram. Ele primeiro – pra puxar a cadeira e ajudá-la a ficar de pé. Ela beijou sua mão e os dois deixaram o bistrô de braços dados. Logo se perderam na multidão que lotava os corredores do shopping naquele sábado à tarde.

Fernanda e eu permanecemos em silêncio por mais um tempo, não lembro quanto, mastigando o resto do sanduíche, bebendo o resto da xícara, saboreando o resto da cena – digna de todos os Oscars – a que havíamos acabado de assistir.

Não mais de corações calados, claro.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O som ao redor

A viúva do 703. O obeso do 802. O velho do 901. O careca do 1004. O dono da cobertura. Eram sempre os mesmos. Os dos andares mais altos.

A começar pelo dono da cobertura – o último a chegar. Os smarts dele não paravam. Vibravam de cinco em cinco minutos. Venda o lote, compre a safra, negocie o preço, segure a cotação, queime o estoque, abra o capital, retire o crédito, aumente o custo, alugue os ouvidos.

Podemos continuar?

Como era tradição, a viúva do 703 iniciava os trabalhos pigarreando e se queixando do zelador. Não tem uma vez que eu passe pelo Seu João sem que ele me faça um gracejo. Foi sempre assim. Desde os tempos em que o falecido – que Deus o tenha em bom lugar – pedalava a Sernambetiba duas vezes por dia. E olha que o meu marido o presenteava todo Natal com cesta básica, panetone e meias velhas.

Meias velhas eram o de menos. O pior eram as cuecas de supermercado que o inquilino do 101 insistia em pendurar na varanda – o que deixava o obeso do 802 irado. Aquilo é mais do que um atentado à moral e aos bons costumes do Fifth Avenue Brazil; é uma piada de péssimo gosto com as cotas extras que pagamos o ano inteiro pra revestir a fachada de granito azul-pavão.

Sempre fui a favor do mármore carrara, como os prédios vizinhos. Agora somos o edifício mais visado da rua. Não vai demorar pra que a bandidagem nos descubra. Se é que já não descobriu. Viram a quantidade de mendigos dormindo na nossa calçada? Liguei pra prefeitura, Secretaria do Meio Ambiente, Parques e Jardins, delegacia, Comlurb, ninguém toma uma atitude – reclamou o velho do 901 enquanto puxava um fio branco de suas madeixas acajuizadas.

Quem não tinha fio branco para puxar era o careca do 1004 – que sobrevivia à reunião de condomínio vendo o jogo do Flu no seu tablet novo.

Quero é um porteiro novo; o Seu João já deu o que tinha de dar. Prefiro um 101 novo, que pelo menos vista Calvin Klein ou Dolce & Gabbana. Meia dúzia de cuecas de supermercado não é nada perto de uma dúzia de favelados. Venda o porteiro, negocie o 101 e queime os pedintes, ora bolas!

E você, 1004, que acha?

Que não vamos sair do zero a zero tão cedo.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Hasta la vista, baby

A convivência diária revela muitas peculiaridades das pessoas. Algumas inimagináveis. De deixar cabelos em pé, línguas enroladas, olhos virados, estômagos revirados. De fazer a máxima “de perto ninguém é normal” parecer apenas a ponta de um iceberg gigante – maior que a língua do Einstein naquela célebre fotografia.

Não estou falando disso à toa: eu casei com uma assassina. Não uma reles matadora de figurantes de papelão, como um Jason, um Freddy, um Jigsaw. Mas uma exterminadora de último tipo, com selinho da Skynet e tudo. Das mais frias e sanguinolentas. Incapaz de passar por um bebê japonês – bem bochechudo, de preferência – sem dizer “hasta la vista”.

Bastaram poucos meses de casamento para eu perceber que acordava e dormia todos os dias ao lado de uma serial killer – de coisas fofas. Um monstro que não pode ver cãozinho, gatinho, pandinha ou angry bird que já comete homicídio por amassamento. É isso. Ela simplesmente amassa suas vítimas. Sem dó nem piedade. Sem um vestígio de correção política.

Semana passada minha vizinha do 401 – uma senhorinha com ares e óculos de Dona Benta – sumiu misteriosamente. Ficou desaparecida até ontem. Foi encontrada numa pracinha a duas quadras daqui, jogada sob uma árvore, toda... amassada. A-mas-sa-da. Quem disse que tive coragem de comentar o caso com a minha mulher? Me fingi de morto.

Aliás, é o que venho fazendo desde que descobri esse prazer mórbido entre seus passatempos favoritos. No meu manual de sobrevivência, não há mais espaço para bombons, flores, poesia, quiçá um versinho de gentileza. Pelo menos até eu encontrar um tarja-preta que controle seu sádico desejo de esmagar qualquer criatura que lembre almofada balofa, bichinho de pelúcia ou a Mafalda.

Por ora, é só bom dia, boa tarde, boa noite. Na maior formalidade possível. Com direito a cerimônia e distância mínima. Afinal de contas, sou jovem demais para morrer.

E não tenho a menor vocação para porquinho-da-índia.