domingo, 27 de dezembro de 2015

Quês de ano novo

Que as nuvens tirem férias no réveillon. Que a contagem regressiva termine em abraços. Que os fogos explodam os maus pensamentos. Que o champanhe adoce as ideias. Que a ceia engorde a esperança. Que a música ensurdeça o desânimo. Que as ondas levem as notícias ruins. Que os ventos tragam as boas. Que a saideira afogue os pessimismos. Que mais festas como essa se repitam. Que as férias demorem a acabar. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que o verão não faça a gente se sentir em Mordor. Que chova um Rio Doce inteirinho nos reservatórios. Que seja amarga a pena para os responsáveis pela tragédia em Mariana. Que eu ganhe muito chocolate: doce ou amargo. Que o Faustão abra a boca só para comer. Que a Cláudia Leitte entenda de uma vez por todas: Ivete só tem uma. Que a Lícia Manzo escreva mais novelas. Que o Discovery compre episódios inéditos dos Irmãos à obra. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que não se confunda liberdade de expressão com liberdade de manipulação. Que as pessoas não se contentem com as manchetes. Que ouçam quem pensa diferente. Que opinem menos e argumentem mais. Que não espalhem desinformação nem reforcem preconceitos. Que duvidem dos especialistas entrevistados na tevê. Que não troquem o bom humor pelo mau gosto. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que venham muitas medalhas. Que os atletas brasileiros joguem como Neymar e falem como Joana Maranhão. Que o Vasco volte à primeira divisão e não saia mais de lá. Que a seleção mereça novamente a inicial maiúscula. Que a audiência do Linha de passe seja cada vez maior que a do Bem, amigos. Que acabem os direitos exclusivos de transmissão. Que se democratize a mídia. Que o futebol e o carnaval sejam realmente para todos. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que panelas sejam usadas para matar a fome. Que o Bolsa Família não sofra cortes. Que mais pobres e negros ingressem nas universidades. Que os estudantes de Sampa endureçam se necessário – pero sem perder a ternura. Que os índios sejam enfim ouvidos após 515 anos. Que refugiados encontrem portas abertas. Que mais gente viaje de avião pela primeira vez. Que se construam menos muros e mais pontes. Que se exercite a empatia. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que a Comic-Con venha para o Rio. Que mais tirinhas da Mafalda sejam compartilhadas. Que o Oscar premie os melhores. Que o mundo tenha um décimo da elegância de Julie Andrews e da lucidez do Chico. Que desliguem os celulares no cinema, please. Que os bons filmes nacionais sejam descobertos pelos brasileiros. Que se erradique de vez a síndrome de vira-lata. Que poetas e músicos recebam passe livre no metrô. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que todo cidadão seja considerado inocente até que se prove o contrário. Que os amigos do Aécio também sejam investigados. Que se respeite a democracia. Que Noam Chomsky e Ciro Gomes deem mais entrevistas. Que as bochechas de Pepe Mujica virem patrimônio da humanidade. Que a redação do Enem seja sobre as desigualdades promovidas pelo capitalismo. Que o Eduardo Cunha deixe o PMDB e vá para a PQP. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que mãe, pai, mano, tios, primos esbanjem saúde. Que eu encontre os amigos mais vezes. Que muitas segundas e sextas sejam enforcadas. Que a Fernanda continue a fazer de mim a minha melhor versão. Que atravessemos o Atlântico outra vez. Que eu ganhe leitores. Que os leitores ganhem algumice lendo meus textos. Que todo mundo saia bem na foto. Que a conexão seja mais veloz. Que o povo substitua o WhatsApp por vida, por exemplo. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Sobretudo: que a Força esteja com você. Sempre.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Olhos nos olhos

Uma pena que Chico – artista brasileiro, documentário de Miguel Faria Jr., fique restrito a poucos cinemas. Uma pena ainda maior que seja visto apenas (ou na quase totalidade dos casos) pelos fãs de sua música, pelos leitores de seus romances, pelos admiradores de sua postura política, pelas senhorinhas que se afogariam felizes naqueles dois mares separados por um nariz.

Mais ou menos como suas peças, que sofriam com a censura antes de serem liberadas e, no fim das contas e dos cortes, eram apreciadas tão somente por quem já compreendia que o país vivia num regime autoritário. Os que mais avançariam na escala de evolução se assistissem ao filme – os walking deads que não se cansam de repetir, por exemplo, que no tempo da ditadura é que era bom – acabam nem chegando perto da bilheteria.

E perdem a chance de tomar um cálice de lucidez ao não escutarem aquele moço de mais de setenta anos rejeitar quaisquer nostalgias. Uma delas: a dos órfãos da bossa nova, que não só choramingam saudades de quando os garotos de Ipanema mandavam no gosto popular, como ainda rotulam de brega toda nota que não caiba em sua partitura estética. Não lhes ocorre que hoje a música do interior e da periferia – talvez a que mais represente o ouvido brasileiro – chega a toda a nação. E isso é bom, conclui o autor de “Paratodos”.

Assim como é bom ver os aeroportos cheios – ainda que o saguão de embarque, para desespero de alguns, conte cada vez menos ternos e cada vez mais chinelos.

Chinelos: impressão de que os pés de Chico descansam neles a projeção inteirinha, tamanha é a sua naturalidade ao abordar temas sérios – como a repressão militar ou a procura pelo irmão perdido – e contar causos divertidos – como o show que fez com Toquinho na Itália, quando tiveram de tocar “A banda” umas cinco vezes e apelar até para “Mamãe, eu quero”, na tentativa de animar uma plateia de quinze testemunhas.

Outra palhinha dessa simplicidade franciscana que permeia todo o filme, e que pode surpreender os desavisados – por vir de um sujeito considerado um dos grandes da música brasileira –, surge no depoimento de um de seus funcionários sobre o costume do cantor de fugir de seu camarim para ficar no de seus músicos: “Já sabemos que é ele; é o único que bate antes de entrar”.

Entremeado com joias buarqueanas interpretadas por artistas tão diferentes quanto Adriana Calcanhotto e Mart’nália, Péricles e Ney Matogrosso, além de trechos de sua obra literária lidos por Marília Pêra – o que por si só já valeria o ingresso –, Chico nos dá uma oportunidade rara de entrar sem bater nas rodas vivas que são os olhos do poeta que jamais deixou a banda da História passar.

Um homem que – mesmo quando refestelado, ao lado de Tom e Vinicius, na mesa de um bar ou jogando uma pelada com os amigos – nunca esteve à toa na vida.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Terceirizando a felicidade

Você que não está nem aí para o Natal porque acha uma presepada essa história de presépio; você que não aguenta mais ver aquele idoso-propaganda, vermelho da cabeça aos pés, anunciando perus em promoção; você que não suporta essa época do ano em que as pessoas praticamente se obrigam a nevar sorrisos, mesmo com a temperatura e os preços subindo – você tem o meu perdão.

Só não tem uma uva-passa da minha misericórdia quem contrata firma para montar o próprio pinheirinho. Sério. Essa gente existe. E alega não ter espaço na agenda para comprar um arbusto que seja nas Lojas Americanas. Jura não dispor de meia hora para juntar o quebra-cabeça de galhos numerados, testar aqueles pisca-piscas que mal resistem até a noite feliz, pendurar aqueles enfeites de purpurina pura, prender no topo aquela estrela que insiste em tombar para a direita.

Mas que graça tem ostentar uma árvore se não foi você que a plantou? Pior: se não foi você que resolveu onde ficaria a bolota mais bonita?

Dia desses, estava eu passando por uma pracinha quando dei com várias crianças e suas babás. Era domingo. Do-min-go. A pergunta que não quis calar: em que lugar do mundo estariam os pais daquelas mudinhas de gente que não ali, ao lado delas, rolando na grama, sujando as mãos de terra, empurrando o balanço, jogando bola, apostando corrida com o vento, cuidando de joelhos ralados?

Cada vez mais, as pessoas delegam a terceiros aqueles instantes que poderiam render lembranças dignas dos findes cheios de sobremesa e colchonete na casa dos avós.

É o fulano que chama a Tia Augusta para levar os filhos à Disney e perde uma selfie com o Mickey. É o beltrano que encarrega a noiva de escolher o bufê e desperdiça a prova dos canapés. É a sicrana que pega o resumo de Dom Casmurro na internet e deixa de olhar nos olhos da Capitu. É a lindona que vota em quem o vizinho vota e joga fora a oportunidade de decidir seu futuro. É o bonitão que manda a secretária comprar o presente da esposa e abre mão do sorriso da amada ao perceber que foi ele mesmo quem garimpou o mimo. É a galera que transfere a vida social para as redes e mal lembra o quão gostoso é um abraço coletivo entre amigos.

Desse jeito, não demora até que terceirizem férias e feriados – já que praia, cachoeira, cinema, teatro ou debobeirismo no sofá só geram estresse e ansiedade.

Nem preciso dizer que eu ofereceria fácil, fácil meus serviços de baby-sitter em Orlando, ou mesmo meu apurado paladar na próxima degustação de acepipes. Reler Machado também não seria sacrifício. Abraços? Forneço-os sem cobrar honorários. Mas, por ora, vou poupar minha generosidade. Vou dar aos enfastiados de plantão uma última chance de semear e cultivar a própria árvore; de experimentar seus frutos – sempre os mais saborosos.

Pelo menos até eu convencer uns clientes a me contratarem para representá-los em cada uma daquelas sessões de tortura.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Primeiro assédio

Não sei se ele aconteceu quando fui obrigado a torcer contra as meninas na dança das cadeiras promovida pela loira do shortinho micro, ou quando fui levado a assistir àquela novela em que a vilã-mor era mulher, a alpinista social era mulher, a bêbada era mulher, a assassina era mulher – e o único homem realmente malvadão da história dava uma banana para o Brasil antes de fugir milionário.

Talvez tenha acontecido quando ouvi um velho sucesso em que valia tudo – só não valia dançar homem com homem, nem mulher com mulher.

Quem sabe se não aconteceu quando aqueles marmanjos entraram lá em casa. Era noite. Era domingo. Um provocava o outro: chegou o negão. O outro retrucava: negão é teu passadis, ô cearense cabeça chata. Até que o terceiro se meteu: esse aí camufla. No que o quarto mexeu o pezinho em sinal negativo: camufla nada, é muito macho. Só interromperam a discussão para elogiar minha vizinha: eita bicho bão.

Uma brincadeira inocente, uma coincidência não planejada, uma rima fácil, um apelido carinhoso, uma cantada ingênua – mas pode chamar de assédio.

Segundo o dicionário, a palavra – que ganhou os trends graças a uma campanha que tem incentivado as mulheres a compartilharem experiências de abuso sexual sofridas por elas – designa “uma operação militar ou um conjunto de sinais em lugar determinado, no qual se estabelece um cerco com a finalidade de exercer domínio; insistência impertinente; perseguição, sugestão ou pretensão constantes de alguém em posição privilegiada junto a outrem para conseguir alguma coisa”.

Convenhamos: o meu, o seu, os nossos neurônios sofrem esse tipo de cerco desde priscas eras – eras bem anteriores àquela em que se dizia que abolir a escravidão prejudicaria a balança comercial. E eles o sofrem trinta horas por dia, oito dias por semana. Das notícias da Monalisa às piadas do Jô, da santa missa em seu lar aos gols da rodada. Feito minúsculos iraques de massa cinzenta, são bombardeados full time por drones que tentam convencê-los de que a vida é desse ou daquele jeito e assim deve permanecer. Você que não seja chato de contestá-la.

Sereias só podem ser felizes se casarem com príncipes, ainda que isso custe suas escamas. O que há de errado com crianças ralando o bumbum na boquinha da garrafa? Tão fofas. Ciclovias e manifestações só servem para fechar o trânsito. Tem mais é que amarrar no poste: bandido bom é bandido morto. Viu aquele menino que nasceu na favela e virou juiz em Brasília? Prova de que qualquer um, com força de vontade, pode ser alguém. E o cara da novela? Defende os direitos humanos, os excluídos, mas na verdade é um bandidaço – igualzinho na vida real. Saudade do tempo em que mulher não ficava ofendidinha com um simples xaveco.

Há quem reclame que hoje tudo é assédio. Que o mundo anda aborrecido demais. Que o politicamente correto tirou o humor das relações. Que não se pode abrir a boca, sob o risco de ser acusado de discriminar os que a mantêm fechada. Que qualquer fonema emitido na hora e lugar errados pode ser usado contra você num tribunal.

Esclarecendo: não é que hoje tudo seja assédio. Já era assim na pré-história de anteontem. A diferença? Hoje o assédio é denunciado, é julgado, é punido. Apesar de espasmos de retrocesso aqui e ali (reação esperada de quem vê seus privilégios ameaçados), as pessoas têm tido cada vez menos medo – e mais liberdade – de expressar ideias e sentimentos antes apenas sussurrados, quando não brutalmente silenciados. A democracia avança e há de seguir avançando.

Aos incomodados: que se mudem. Ou que mudem o disco. Vale tudo mais não.